sábado, 19 de julho de 2014

ALEXANDRA ALPHA



É neste cenário que começa uma das mais estranhas aventuras literárias de José Cardoso Pires, “Alexandra Alpha”. Do alto de um morro da cidade do Rio de Janeiro, um homem inicia o seu voo em Asa Delta. Descrito como um anjo louro, ia planando sobre os prédios e as praias da cidade até que a graciosidade do seu voo é de súbito interrompida, precipitando-se a queda vertiginosa e o impacto final da sua morte violenta sobre um grupo de rochedos no litoral conhecidos como Ponta do Arpoador. Para trás deixa um filho igual a ele entregue a uma ama negra da periferia, uma namorada com quem coabitava, uma ex-mulher detida num presídio e uma longa carreira de playboy. A namorada, uma portuguesa a trabalhar no Brasil, acabará por regressar a casa trazendo consigo Beto, o filho do anjo.
A narrativa que se segue decorre em pleno processo revolucionário, ou no seu rescaldo, no momento em que Portugal procura assentar da poeira da revolução. Nesse conturbado período a inevitável confrontação do Passado e do Presente, as utopias e gestação e a violência revolucionária ocupam a ordem do dia. Para Alexandra e o seu grupo de amigos, por uma razão ou por outra, não há grandes ilusões dignas de registo. A bebedeira da ilusão de um mundo novo (se alguma vez existiu) cai rapidamente numa ressaca incómoda. No bar onde se costumam encontrar mantêm um mundo só deles feito de escárnio e descrença, afastamento e desilusão. Alimentam as conversas com cenários novos mas fazem-no apenas para ter alguma coisa sobre a qual comunicar. Rapidamente se reduz tudo e mais alguma coisa à mais indiferente insignificância, seja ela a novidade da política, o acontecimento desportivo ou mesmo os aspectos da vida de cada um deles. Vão vivendo assim, entre copos de whisky e ambiente escuro de ar condicionado como quem nem deseja ser incomodado pela realidade nem sequer fazer parte dela…ou de coisa alguma. E não há nisto algum complexo de superioridade, tão só um refúgio, um isolamento, uma forma de empurrar o tempo para a frente. Vivem a sua cultura e intelectualidade como únicos alimentos necessários para continuar a acordar no dia seguinte. O resto não lhes interessa.
Mas a vontade de não querer fazer parte do mundo em que vivemos, inventando outro mundo muito mais confortável, não nos protege nem nos torna imunes à realidade. E essa mesma realidade acabará por se fazer notar nas suas vidas por vezes de maneira brutal. Como Alexandra e alguns amigos que acabarão por perder a vida num acidente de aviação, fruto de sabotagem.
O voo do anjo que inaugura a narrativa acaba por ser a parábola de um tempo. Da harmonia e grandiosidade do voo planado sobre os céus da cidade para o trágico desfecho da queda e morte do anjo. A mesma coisa se poderia dizer sobre uma revolução que transbordou alegria e esperanças sem fim sobre o futuro, um momento único na história dos povos, e que, como todos os momentos mágicos da Humanidade rapidamente se desfez, se despenhou e morreu para deixar entrar as forças da normalidade…


Artur  

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