quinta-feira, 22 de setembro de 2011

TRILOGIA DA AUSÊNCIA – II






B.

Não sei se foi o telefonema da minha mulher (“quando vieres para casa não te esqueças de ir aos frangos, não temos nada para jantar), sempre oportuna, quando estou concentrado a fazer alguma coisa, se foi a cara de palonso do meu cliente que quer pagar menos 50 euros de pensão à mulher dele, se foi a mulher que estava ali a vender castanhas na rua, se foi o olhar vazio daquela rapariga mal vestida e com ar sujo à porta do estádio da Cruz Quebrada quando fui correr de manhã. Nunca sei nada em relação às razões de ser do que quer que seja. Baralho-me a mim mesmo a um ponto que me é extremamente difícil encontrar o caminho e sair em qualquer direcção, da confusão em que me meti. Acho que foi sempre assim. Resolvo as equações mais complicadas com muito mais facilidade do que consigo resolver os meus problemas. No fundo o que eu acho é que os problemas que vou encontrando também me pertencem e, como não os posso resolver sem a colaboração dos outros, acabo por não conseguir resolver nada. E o gajo quer pagar menos 50 euros, a escola dos filhos custa 400 a cada um, e sôtor trate lá disso que a minha ex-mulher não precisa do meu dinheiro para nada, o pai dela é rico, e resolva lá isso, e eu resolvo e escavo na lei a conveniência que mais interessa a este palonso que vai pagar menos 50 à mulher e mais 200 a mim. Mas que é que se pode fazer? O mundo é assim desde muito antes de eu nascer e não foi por eu aparecer que o vento passou a soprar noutra direcção. E faço o que esperam que eu faça desde que me conheço porque essa é a única maneira de não ver a minha mioleira torrada, essa é a única maneira de não me chatearem a cabeça, de pagar a faculdade dos meus filhos, sustentar a casa, encarar o saloio do meu sogro sem precisar do dinheiro dele, atravessar a vida com alguma tranquilidade, pagar a casa de saúde ao Camilo.Inquestinavelmente o mais inteligente de todos nós, infelizmente dominado pela depressão.
E no entanto houve um tempo em que as coisas podiam ter marchado noutra direcção, um tempo em que me distraí a fazer equilibrismo à beira do poço, um tempo em que o desinteresse tomou conta dos dias, um tempo em que nada me interessava. Valeram-me o Ângelo e o Camilo, a sorte de encontrar os gajos certos no momento certo, mesmo antes da precipitação pela ladeira abaixo. Não sei qual das imagens do dia é que me fez regressar aquela noite fantástica em que tudo aconteceu, aquele momento tão determinante que me fez atravessar a agulha da linha para a estação certa, o que sei é que nunca me vou esquecer dele. Não, não, foi aquela rapariga mal vestida e com ar sujo à porta do estádio depois de ter ido correr. Foi no semáforo fechado em que tive que parar com a mota. Vi o Tejo à minha frente e, mais para a esquerda, vi a sala 32 da escola onde estive no 12º ano, a sala onde nos reuníamos para o “charro” das 5 antes de ir para casa, a escola onde conheci o Ângelo e o Camilo, a escola onde a minha vida podia ter escolhido direcções opostas, a escola que já lá não está, como se nada daquele tempo tivesse alguma vez acontecido. A escola onde andámos e a estação de Cascais à espera deles, que desembarcavam de um comboio de Marte com as criaturas mais estranhas lá dentro, “Freaks”, “Punks”, indiferenciados, com ar ausente como se uma potente mistura química estivesse a circular nas condutas do ar das carruagens desde o Cais Sodré. Do concerto lembro-me do princípio e do fim. No Dramático de Cascais os Ramones chegaram com Rockaway Beach, tocaram as primeiras cinco músicas sem parar, indiferentes aos aplausos ( o baterista dava três berros nos últimos compassos da cada musica e eles arrancavam de imediato para a seguinte), finalmente disseram boa noite ou qualquer coisa do género. O pavilhão navegava no espaço descontrolado, as pessoas dançavam, atiravam-se ao chão, urravam e faziam milhares de coisas ao mesmo tempo, nuvens de erva pairavam sobre as nossas cabeças, não havia maneira de evitar respirá-las. Porquê os Ramones? Porque para eles tudo era simples e veloz. Em três frases e dois acordes despachavam os problemas mais difíceis. Para nós bastava estremecer os corpos e ligar à corrente eléctrica que o mundo desaparecia naquele instante, as ondas más saíam porta fora e ficava só a vibração, uma vibração nem boa nem má, mas uma força intensa que nos elevava aos patamares mais elaborados da consciência. A minha mãe não tinha morrido quando eu tinha 15 anos, o meu pai não passava a vida a trabalhar numa multinacional pelo mundo fora e eu não estava sozinho na minha casa no Birre, a meio caminho do Guincho e de Cascais. Os coices da vida não me acertavam e a música era um estado eterno de vibração. Às vezes ainda sinto isso quando aperto as goelas à mota na A5 a caminho de Cascais e obrigo-nos a vibrar a um ponto muito perto da explosão. Não é o caso de hoje. Hoje tenho que ir à igreja. Subo com a mota até ao alto da Serra de Sintra, acendo um “berlaite” e ponho-me a ouvir a respiração da montanha. A outra parte do concerto de que me consigo lembrar é já cá fora. A polícia de choque estava à nossa espera, conversa vai, conversa vem, caem-nos em cima, grande carga de porrada seguida de fuga e aceleração. Como estava perto de casa não tive dificuldade em me esconder com o Ângelo e o Camilo. Depois fomos para a praia acabar a noite. E ao fim de muita carga na cabeça afastei-me um pouco em direcção às rochas. Em cima de uma vi a minha mãe, perguntei-lhe o que estava ali a fazer àquela hora. Não respondeu. Sorriu-me. Fiquei a olhar para ela durante não sei quanto tempo, até que me disse: “Não exageres, Bruno. Não exageres. Eu estou bem, não te preocupes.” Depois disse-me adeus e foi-se embora. Quando voltei para trás encontrei o Camilo. Vinha transtornado, contei-lhe o que se tinha passado. Ele, com a maior naturalidade pôs-me um braço por cima do ombro. “Estava bem a tua mãe?” Disse-lhe que sim. “Então, óptimo. Senta-te aí e vamos beber uma cervejinha.” E assim fizemos. Toda a situação extraordinária naquela noite estava condenada à banalização, as noites mágicas dispõem de uma lógica própria, de um sentido pessoal, de um propósito exclusivo que termina ao amanhecer. Tudo era tão evidente como o mar e as ondas que não se viam de noite mas que nem por isso deixavam de existir. E o amanhecer foi saudado pela nossa própria coreografia de uma das músicas dos “Ramones”. O Sol nascia e nós tocávamos as nossas guitarras e bateria imaginária. “Sheena is a punk rocker, Sheena is a punk rocker yeah” . Desde aí ficámos amigos até hoje, estudámos juntos e seguimos para a faculdade. Se não me tivesse encontrado com eles, talvez hoje não estivesse aqui ao pé da serra a ouvir a respiração do monte encostado à mota. Talvez à beira do poço tivesse escolhido saltar lá para dentro. Talvez não me surpreendesse quando chegasse a casa e a minha mulher me perguntasse: “Então e os frangos?” Talvez não estivesse cá para me lembrar de responder: “Estava fechado.”

2 comentários:

Hélder disse...

Estou com esperança que nesta "trilogia" o próximo episódio seja o 6... Depois vais ter de contar os 1, 2, e 3... que nem qual Star Wars!
Um abraço!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Não, Helder. É apenas A, B, C e Epílogo. Espero que gostes. Abraço.