quarta-feira, 14 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DO LADO NEGRO




Há dias em que a estupidez, a ausência de racionalidade, a animalidade dos comportamentos e a nulidade da esperança são tão grandes, que a vontade de escrever é quase nenhuma. Quando não há futuro o presente transforma-se numa imagem diluída de sofrimento e falta de vontade. Um espaço de morte aparente infiltra-se por todas as frestas da existência e vai-se entranhando como um manto de nevoeiro cada vez maior, omnipresente. Nos anos 80 eu andava na casa dos vinte anos e acordava para o mundo real como quem é atirado para um pesadelo. O FMI andava por aqui e nada parecia ser alvo de alegria. Tudo era proibitivo, tudo custava os olhos da cara e praticamente ninguém tinha dinheiro para comprar nada. As estruturas económicas caíam uma após outra como um castelo de cartas, as fileiras de desempregados engrossavam nas filas para os subsídios, para a fome, para o desespero.
A principal razão porque nunca fui saudosista desses tempos é porque não me consigo esquecer das dimensões negras que pairavam sobre eles. Nunca me esqueci daquela família de Setúbal que jantou uma sopa com veneno para os ratos. Um suicídio colectivo a que só escapou o cão. Não tinham dinheiro para nada, pai mãe e dois filhos. Alguém se lembra deles? Havia regiões inteiras assoladas pela fome, bandeiras negras desfilavam nas manifestações, o bispo de Setúbal (D. Manuel Martins) levantava a sua voz de protesto contra as injustiças, contra o descalabro social. A violência tomava conta das ruas, a juventude, sem objectivos, sem futuro e sem lugar na sociedade, entrava no mundo das drogas. Eliminando a consciência, o sofrimento, o desespero, e, muitas e muitas vezes, a própria vida. O serviço militar era obrigatório (desde que não se conseguisse uma cunha de dispensa), como se ainda existisse uma guerra. A escolha de um curso, de uma actividade profissional, era baseada na fraca oferta existente. Poucos escolhiam aquilo em que melhor se poderiam realizar. Por alguma razão, se observarmos bem o espectro político-partidário, dos 50 para os 30 e tais, há um fosso de uma geração nos corredores da política. Como se durante 20 anos ninguém tivesse nascido aqui. E de certa forma, nunca nasceu. Nem a contemplar as maravilhas do 25 de Abril, nem a aplaudir a histeria neo-liberal, nem de boca aberta com o dinheiro que chovia do céu. Porque lhe faltavam as forças, porque lhe faltava a crença, porque se apercebeu demasiado cedo da mentira em que nos envolvem a todas as horas, porque nunca tiveram lugar entre dois mundos. A actividade cultural era praticada em ambiente subterrâneo, afastado dos grandes meios de comunicação. Os artigos circulavam em folhas fotocopiadas, os concertos faziam-se em espaços malditos, se alguém quisesse criar, tinha que o fazer por sua conta e risco. Não havia dinheiro para nada a não ser para pagar a dívida ao FMI.
E era neste ambiente esquizofrénico e deprimente que corriam os dias na maior parte dos anos 80. Finalmente a nossa entrada na União Europeia aliviou um pouco esse tempo negro. Mas poucos entenderam as lições desse tempo. Tão pouco que não descansaram enquanto não repetiram a receita.


Artur

2 comentários:

Hélder disse...

É histórico, o pesado legado do povo que se acomodou este pequeno canto da Europa. Já o general romano, falava a César do povo que não se governa nem se deixa governar. Desde sempre, toda a gente gosta de dar palpites mas poucos se chegam à frente. Lembro-me do Velho do Restelo, belíssima caricatura camoniana de um povo parco de coragem. Alguns, poucos, insurgem-se. Manifestam o seu desagrado. Mas até desses, quantos no momento único em que a sua voz realmente conta, durante um período de 4 ou 5 anos, terão ido votar? Descrentes do sistema, acham que o seu voto não muda nada. Que todos os que vão para o "poleiro", vão para governar os seus interesses. Ou como eu digo muitas vezes, para de nós se governar.

A classe política é a imagem dos habitantes de um país que neles vota (ou dos que deixam, com o seu mutismo, absentismo, alarvice, que os mesmos que de nós se governam, sejam eleitos - ciclicamente).

Gostemos ou não este é um facto. 50% de abstenção numas eleições, não é sinónimo de uma democracia saudável ou representativa. Por isso, se calhar, merecemos o que temos...

Guerra Junqueiro em 1886: "Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas..."

Em 1886, não se vivia em democracia. O povo não tinha voz nas urnas. Veio o 25 de Abril, o capitão Salgueiro Maia (para mim um dos maiores heróis da história portuguesa (a par com Aristides de Sousa Mendes - mas isso é outra história...)) mais uns quantos bravos, idealistas, dão o corpo ao manifesto, metem-se nos cornos do touro, para conseguir mudar o estado das coisas, o estado a que isto tinha chegado (asfixia de um povo, mortes de militares no ultramar, hipocrisia sem fim), para 40 anos depois, após uma adesão desastrosa à CEE, estarmos novamente descreditados do sistema, sem justiça, saúde, educação, segurança social.

Somos piores do que os nossos antepassados do século XIX? Somos! Temos mecanismos que eles não tinham. Temos VOZ! E não fazemos uso dela... 50% não fazem... nem que seja para votar no menos mau... num desses "pequeninos" que a malta até gosta de ouvir, mas "em quem não vale a pena votar, porque não vão lá"!!!... Ouço dizer: "Com o meu voto é que eles não vão para lá!" Nada mais errado. É precisamente sem esse voto que eles vão para lá...

Hélder disse...

O delapidar dos bens públicos não se vai ficar pela venda das EP`s. Isso não vai chegar para acabar com a sofreguidão desatinada de um estado besuntoso, gordo e gorduroso, um estado mal engendrado e mal explicado, onde o que deve ser feito, não pode nem se consegue que o seja, porque quem dele se serve e se governa, está muito bem escudado. Os exemplos são infindáveis. Basta querer ver.

Ainda há a reserva de ouro no Banco de Portugal, que não vai durar muito por lá... E depois, se calhar, começa-se a vender isto tudo à fatia, a preços de saldo.

Aperta-se quem trabalha, em impostos, em insegurança no trabalho, na incerteza do dia seguinte, o fantasma do desemprego, o sufoco das prestações para pagar, porque ainda não há muito tempo era fácil conseguir empréstimos e o dinheiro estava barato...

Se fosse vivo, Bordalo Pinheiro, hoje faria uma caricatura do povo português ainda mais atado. Um Zé Povinho pândego, indefeso, inofensivo, incapaz de perceber o que se passa com ele, insensível ao freio e bridão, aos elásticos e à rédea alemã, e aos esporins de roseta que lhe cravam na barriga. Pelo menos vai ficar daqui a uns tempos mais elegante...

Meu caro Artur, desbaratou-se os dinheiro da CEE em maus negócios. Acabou-se de vez com a agricultura e as pescas por imposições comunitárias. Há milhares de hectares de terrenos produtivos, que não podem produzir, para cumprir quotas da UE. Os nossos barcos não podem pescar nas nossas águas (podem os espanhóis...), e o cimento não mata a fome, mas enche como nunca os bolsos de uns poucos...

Faz-me confusão pensar que os nossos filhos, se quiserem ter um futuro melhor têm de se ir embora de um país tão bonito como o nosso.

Já estão a ir.

Um abraço.