sábado, 29 de maio de 2010

UM DESTES DIAS

Um destes dias a vida vai-se encarregar de decidir o caminho dela e seguirá em direcção à morte. Vai ignorar as hesitações mastigadas, os vazios da conveniência e os compassos de espera. Sentar-se-á comodamente aos comandos do destino e acertará instrumentos de navegação, rumo e velocidade tal e qual um experiente comandante de alto-mar. Olhará para mim por cima do ombro, em pé na ponte de comando, e dirá por entre os bafos do cachimbo e a nuvem branca das barbas: “acabou-se a brincadeira, rapaz. Agora é comigo”. Não vou fazer birra, muito menos implorar seja lá o que for. Sei que lá num fundo qualquer de mim este momento sempre existiu. Limitou-se a acordar.
Um destes dias os meus passos deixarão de me responder e ganharão vontade própria, provavelmente a caminho de tua casa para te dizer qualquer coisa. Vão ignorar hesitações, considerandos, pruridos, compassos de espera e vão acelerar a marcha numa única direcção. Para acabar o que ficou por fazer, para te dizer o que escondi ou não tive tempo de … Os meus passos vão virar-se para mim e dizer enquanto aceleram: “Acabou-se a brincadeira, rapaz”. E enquanto sigo rebocado pela vontade deles vou imaginando, vou inventando desculpas para te aparecer à frente assim, sem mais nem menos.
Um destes dias o meu ego vai encarregar-se de mim e correr com a generosidade pela porta fora. Vai ganhar vontade própria, ser egoísta e mandar tudo para a “puta que os pariu”. Cá fora vai deixar um letreiro “Fechado Para Obras. Estou-me Cagando para a Vossa Compreensão”. Vai assumir que entre ajudar e amar os outros e ajudar o EU há um equilíbrio terrível de suster. Uma fronteira de contornos mal definidos em que a vontade de agradar escorrega muitas vezes para o buraco do abuso, para o abismo em que nos esquecemos de SER. Dirá : “Acabou-se a brincadeira, rapaz.” E com isso passará a obras de restauro que mais não são do que uma artificiosa instalação de um sistema de defesa. Um alarme que avisa quando eu já deixei de ser eu. Um circuito interno de vigilância para que perceba que o mundo não foi feito para ser salvo nem as pessoas se libertam se não se quiserem libertar.
Um dia destes vou acabar à tua porta a desculpar-me com a vontade própria dos meus passos. Fui empurrado para aí e não consigo encontrar uma razão válida para isso. Olhar-me-ás com alguma surpresa e farás a sacramental pergunta misturada com o tempo que passou desde a última vez que dissemos “adeus”. Nessa altura os meus passos estarão muito caladinhos enfiados nos sapatos, como se não existissem. Disfarçam a fingir admirar o teu tapete da entrada. “Vim terminar a despedida” – sai-me pela boca fora como poderia ter saído um comentário acerca do tempo. E tu, recomposta da surpresa inicial, olhar-me-ás com a tua proverbial assertividade e dirás: “Está terminada. Vai-te foder”.
A porta na cara, o patamar da escada vazio, os passos a olhar para mim a pedir instruções…
Um dia destes a vida se encarregará do rumo, domesticando os passos para andarem direitos e mandará o barco para o estaleiro para reparações.

Artur

3 comentários:

Unknown disse...

Magnífico Artur, lindo, imaginativo, inspirador, sublime...A ser verdade, quem sabe a reacção não será outra e de repente os teus passos são surpreendidos e convidados a passear a 4 pés. bjs

Clarice disse...

"um destes dias"..."acabou-se a brincadeira, rapaz"...

...ouvi dizer não sei onde:), ou li e também não sei o lugar dessas palavras... que quando se diz, nunca mais ou acabou-se, é porque está muito presente ainda a possibilidade de não existir fim... é que quando existe fim existe indiferença e mandar o outro ir-se não sei o quê... é um sinal tão grande de presença interior (a mais valiosa mas insuficiente porque é longe, e morre-se tanto no longe)...

Senta-te na escada e espera só mais uns minutos (lá está o tempo a tomar conta de nós...)vais ver que a porta que se fechou ainda...

eu já estou aqui na casa do lado à janela a espreitar pelas cortinas... "um destes dias"... vais agradecer aos teus pés:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Alfa e Clarice,
Obrigado pelas vossas palavras. O objectivo neste texto é o de se estar sempre pronto para balanços, sempre pronto para avaliações do passado, aprender a viver com ele e seguir em frente. As imagens ou figuras de estilo utilizadas são apenas instrumentos escolhidos para melhor ilustrar essa atitude. Obrigado por me lerem.