terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CÁ ESTAMOS


Cá estamos. As memórias a jogar o seu eterno jogo de importância com as sensações dos novos dias, e a consciência a observar atentamente o tabuleiro de xadrez sob o complacente olhar da morte. Qual será a melhor jogada a seguir antes do inevitável Xeque- Mate? Cá estamos, a barba continua a ser feita sempre da mesma maneira, no ritual diário daquele que revejo no espelho. Umas vezes o fosso das olheiras a insistir debaixo dos olhos, outras os pêlos brancos que nascem como coelhos por toda a parte, o ventre dilatado que já viu melhores dias… Quem é este gajo que me recebe todos dias no reflexo da minha imagem? Alguém que não eu, de certeza. Mais um livro de registos do andamento comercial de uma existência. O fio dos dias a perder-se e a consciência deles sempre lá, no livro das contas, no tabuleiro de xadrez, em todos os jogos que acabamos por jogar sozinhos. Sempre sozinhos. “Cá estamos” – diz-me a morte, ou os dias na imagem do espelho, ou o meu tio poucos dias antes do seu próprio Xeque-Mate. E estamos, e vamos estando sem nada perceber desta valente e patética tragédia em que nos colocaram. Terapia ocupacional para substituir a dramatização do pensamento, droga existencial, um cavalo a ameaçar o bispo adversário, ganhar tempo…
“Cá estamos” – diz um cão alegre a correr pela praia fora, como se não houvesse “amanhã”, nem “ontem”. E haverá realmente? Putos empoleirados nas pranchas como tartarugas emigrantes à espera da onda perfeita. A praia, o mar, a Vida e um universo inteiro sem respostas que serve apenas para respirar, sentir, ser parte dele. Um universo inteiro de dúvidas que nunca se esclarecem. Cá estamos, amigos. Arrasta-se a carcaça alegremente e bendiz-se a sorte de ter quem nos ame. Há pior…há sempre pior. Num espaço sem sentido, numa vida sem propósito, num lugar sem justiça, há sempre pior do que nós.
Nas ondas, no retardar clínico do Xeque- Mate, na areia húmida onde se corre, no corpo perfeito da noite de festa as peças movem-se..inexoráveis…impossíveis de vencer. Mas, no entanto, elas movem-se. E cá vão andando mesmo que não faça sentido andar, e cá se vão deslocando em movimentos de esperança mesmo quando nada há para esperar.
Cá estamos…
Artur

3 comentários:

Carlos Lopes disse...

E já não era sem tempo!

ps: não te esqueças de me dares um toque quando voltares a "andar nos ares", ok?

Abraço

Clarice disse...

"A praia, o mar, a Vida e um universo inteiro sem respostas que serve apenas para respirar, sentir, ser parte dele."

Este "serve apenas"... vale MUITO nos dias em que para nós isso é tanto!
Bom 2010!!(mesmo com o ventre dilatado):)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Carlos e Clarice,
Muito obrigado pelas vossas palavras e pelas vossas visitas. Abraços e beijos e nunca deixem de visitar este blog
Artur