sábado, 6 de dezembro de 2008

O ROSTO DE MARIANA


A manhã levantava-se devagar, meio envergonhada de luz, debaixo de uma enorme carga de água. Quando o BMW se deteve próximo de uma paragem de autocarro, ainda a Rua Maria Pia estava deserta de tráfego e de pessoas. Uma mulher saiu e fechou a porta do carro, ficando a ver o monstro de chapa azul escura desaparecer para os lados de Alcântara. À sua frente subia a Rua Correia Teles, uma elevação breve mas bastante acentuada que ia estabilizando à medida que atravessava a quadratura do bairro de Campo de Ourique. Para trás, a rua que descia, um dos muitos acessos que conhecia de cor, e que desaguava no caos urbanístico do Casal Ventoso. Noutras alturas teria descido aquela rua no automático até à porta de um «dealer», onde compraria mais uma dose de heroína. Para a pagar havia a receita obtida numa noite de prostituição numa rua de Campolide. Sem saber bem porquê, naquela manhã resolveu esperar um pouco à chuva, antes de descer. Como não tinha nenhuma protecção além do blusão surrado de ganga que lhe disfarçava o frio, a chuva depressa tomou conta dos cabelos, pingando pelos caracóis castanhos em breves fios prateados que a manhã iluminava. Na rua deserta a mulher perguntava-se: “ O que é que eu ando aqui a fazer?”. Uma pergunta mil vezes formulada que outras mil se manteve isolada de resposta. Um absoluto e enorme “nada” do tamanho da solidão daquela rua. Chamava-se Mariana. Sabia que era dependente de heroína, embora já não se lembrasse há quanto tempo. Sabia que tinha um filho que entregara à guarda do pai. Um papel assinado no Tribunal de Família num dia de Sol. Esforçava-se para se tentar lembrar há quanto tempo o tinha feito, sem êxito. Podia ter sido há uma semana, podia ter sido há um mês. O filho deveria ter quatro anos, isso lembrava-se. Tinha sido presa no dia do seu aniversário há não muito tempo. Às vezes tinha saudades dele…Outras não. Esquecia-se que ele existia. Lembrava-se de uma tarde de Sol, sentada na encosta do monte virada para o vale de Alcântara, a ver ao fundo o Tejo a caminho do mar. Podiam estar os dois numa praia a brincar na areia ou a passear à beira mar… Mas eram cada vez menos as suas certezas, cada vez mais curto o seu espaço de lembrar. Por isso decidiu ficar ali mais algum tempo à chuva, tentando alargar esse tempo. Antes que a comichão chegasse, ou as dores que lhe queimavam as entranhas e a punham a urrar como um animal selvagem. Naquela manhã, a chuva forte que caía e limpava as ruas, sem o saber, limpava também o seu corpo, amolecendo as chagas que ali começavam a habitar, atenuando os nódulos negros nos braços, nas pernas, e em todos os espaços onde a agulha se introduzia sem pedir licença. Como não conseguia roubar, prostituía-se. Naquela noite tinham sido quatro, cinco vezes que a sua boca havia tirado o molde de sexos masculinos solitários, erguidos na sombra do interior dos automóveis. O corpo não. Apenas a boca, os lábios, as mãos. Não era capaz de vender o corpo porque já não o tinha. Desaparecia um pouco todos os dias como se um ser estranho instalado no seu ventre a fosse comendo devagar. No reflexo da montra de uma loja confirmava a sua transparência, não se lembrando sequer se alguma vez tinha sido bonita. Certezas, tinha duas. Precisava de heroína para viver e era uma puta. Não havia dúvidas sobre isso, nem sequer desconforto. Apenas uma miséria vegetativa feita de nada e de coisa nenhuma que não parava de crescer. Quantas vezes tinha dito a si própria, olhos na seringa, que aquela seria a última vez? Tantas quantas as que continuou a mentir
Chamava-se Mariana e era bem possível que em tempos tivesse sido bonita. Agora era um pequeno aglomerado transparente de pele e ossos que se passeava à chuva pela Rua Maria Pia às seis e meia da manhã. Ia descer, comprar, consumir. À noite, voltava a sair para se vender numa rua escura de Campolide, fazer dinheiro, para poder voltar a descer, comprar, consumir… Quis chorar por se sentir tão mal, tão sozinha, tão vítima de si própria. Mas tinha-se esquecido de como o fazer. A luz da manhã era agora mais brilhante, mais intensa no cinzento geral das nuvens que haviam abrandado a sua descarga de chuva. As primeiras pessoas começavam a aparecer a caminho do trabalho, agrupando-se de forma automática na paragem do autocarro. Apesar de estarem a alguns metros de Mariana, ninguém a via. Resolveu descer. Que se lixasse o mundo e aquela gente toda num suspiro. É claro que não a podiam ver. Se ela já não se via, não se lembrava de quem tinha sido, não eram os outros que o iam fazer. Naquela manhã ninguém a viu. Só a chuva e o velho blusão surrado de ganga. Ninguém a viu também quando descalçou os sapatos e resolveu atravessar a rua chapinhando nas poças de água. Só o motorista do autocarro reparou no seu rosto tranquilo e nos caracóis castanhos quando não conseguiu parar. E continuou a ver aquele rosto nos seus sonhos e nas sessões com o psicólogo da empresa durante alguns meses. Foi o último e o único a ver o rosto de Mariana, o único a lembrá-lo depois de morrer. Um dia comprou flores e foi colocá-las na sua campa. Desde aí, nunca mais voltou a sonhar com ela…

(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora 2006)

3 comentários:

Clarice disse...

“Amanheci” novamente ao ler outra história… bonita!

Artur, eu gostava mesmo era de as poder ter em papel, gosto de andar com histórias na mala… :) avisas quando sair outra edição?

Ah, é verdade já me esquecia de dizer: "Ganda malha"!!!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Enquanto não consigo convencer a editora vou deixar no blog os 4 primeiros porque estão todos interligados. Obrigado Clarice.
ARTUR

Carlos Lopes disse...

Venha de lá os outros dois, embora os conheça há muito tempo...