terça-feira, 9 de dezembro de 2008

UM TRIPLANO DE MINIATURA


De que matéria serão feitos os sonhos? De memórias De desejos? De simples ilusões? De coisa nenhuma e de um pouco de tudo? Essa era a questão que menos poderia interessar ao pequeno André quando acordou naquela manhã. Lembrava-se que tinha estado noutro lugar durante a noite. Numa praia de areia dourada, onde se via o fundo do mar piscado em milhares de reflexos de luz. Uma terra sem nome onde se sentia bem a brincar com o seu balde e a sua pá, no faz e desfaz das formas da areia molhada. Alguém o chamava lá de cima, debaixo de um toldo. “André! Annnndréééé´!”, a mãe com um chapéu de palha arredondado de aba larga fazia-lhe sinais acenando com a mão direita. Olhou ainda hesitante para o castelo inacabado à sua frente. Faltava acabar o fosso e um lado das muralhas. Tinha tempo quando voltasse. Aquele chamado denunciava qualquer coisa de muito breve. Um creme nas costas, um chapéu na cabeça, ou talvez a sandes que estava por terminar. Viu a mãe em pé com uma das mãos estendida à altura dos seus olhos, que lhe dizia para a segurar. Agarrou-a. Por mais que tentasse não lhe conseguia ver o rosto. Só o comprimento das pernas, um fato de banho com rosas estampadas e, lá em cima, uns óculos escuros tapados pela sombra do chapéu. Sabia que era a mãe dele, da mesma maneira que nos sonhos temos certezas sem ter imagens definidas. Passearam lentamente ao longo da praia, muito perto da linha inconstante onde as ondas vinham morrer vestidas de branco. Trocaram palavras, trocaram sorrisos, trocaram carinhos. A mãe pegou-lhe ao colo por breves instantes e abraçou-o demoradamente. Depois voltou a pô-lo no chão. Disse-lhe qualquer coisa que lhe custou a dizer. Qualquer coisa que começava numa desculpa e acabava numa despedida. Por uma razão qualquer que André não conseguiu perceber, depois daquela tarde na praia iria passar muito tempo até a voltar a ver. Um tempo muito grande. André ainda tentou dizer-lhe para ficar mais um pouco, mas ela foi-se afastando como se tivesse um autocarro para apanhar, daqueles que partem a horas certas. A sua figura foi ficando cada vez mais pequena até ser uma silhueta, até ser só o espaço vazio da sua ausência. André ficou sozinho naquela praia sem perceber bem porquê. Não chorou nem gritou como costumava fazer quando o contrariavam e admirou-se com isso. Depois voltou para trás e caminhou de encontro ao castelo de areia que tinha deixado a meio. Com a subida da maré, restava-lhe apenas a torre mais alta, que parecia querer resistir enquanto memória do castelo que já tinha sido. Sentou-se na areai a ver o mar por instantes. Depois acordou. Voltou a conhecer as paredes do quarto e os desenhos estampados na cobertura do edredão que o tapava. Sentou-se na cama meio estremunhado e esfregou os olhos. Tentando rever o sonho, compreendeu perfeitamente que a sua mãe nunca mais o voltaria a visitar. Teve pena porque, das poucas vezes que se lembrava de a ter visto, sentia-se bem. Pensou depois no pai, nos avós, na Ana Rita e teve um longo bocejo. A mãe podia ter partido, mas havia ainda muita gente no seu pequeno mundo. Gente que não se tinha despedido e que gostava muito dele. Olhou para o lado direito e viu, sobre a mesa-de-cabeceira, um brinquedo que não tinha visto antes. Um avião vermelho e branco com três asas. Isso queria dizer que o pai tinha chegado. Achou o avião tão estranho que pegou nele para o observar com mais atenção. Até que alguém abriu a porta do quarto e lhe veio dizer que era hora de ir para a escola.

(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora, 2006)

1 comentário:

Clarice disse...

Este é um sonho!!! E como tal não existe por si só… (os sonhos andam sempre acompanhados…) torna-se intenso à medida que se “vê” a outra margem de “ Um Rio, e duas famílias”, “O rosto de Mariana” e “Voo nocturno”.

*estes contos têm que andar na minha mala, ai têm, têm…
Parabéns Artur!