sábado, 10 de maio de 2014

PARA NOS RECORDARMOS QUE SOMOS HUMANOS



Esta extraordinária fotografia reporta-se a um momento de pausa nas filmagens de “La Strada” de Federico Fellini e conta a bonita idade de 60 anos. Nela podemos ver à direita Giulietta Massina, eterna companheira do realizador, descontraída a olhar para a câmara. À esquerda está um Anthony Quinn concentrado nas voltas daquilo que parece ser um pedaço de arame. Quando vi este filme pela primeira vez ainda não tinha vinte anos, e no fim, senti que tinha tirado uma licenciatura em filosofia de vida, um mestrado em Cinema e um doutoramento em comportamento humano sem me levantar da cadeira.
Sobre “La Strada” podiam escrever-se centenas de artigos sem que se esgotassem os temas. Para começar, o diálogo eloquente e a oposição entre Neo- realismo e Surrealismo no Cinema era suficiente para ocupar horas de debate acerca da componente formal.
Ao reencontrar o grande Zampanó e a sua assistente Gesolmina sentados ao pé de um circo de lona remendada tudo volta a ser objecto de pasmo e ternura. Antes de mais, a história destes personagens é um profundo ensaio sobre a fragilidade. Dois saltimbancos pobres e limitados percorrem estradas e povoados de uma terra tão pobre como eles exibindo o seu número. Ela anuncia e ele quebra uma corrente de aço com a força da caixa torácica em troco de algumas moedas, de uma refeição. Ocasionalmente juntam-se a um circo. São almas frágeis, limitadas que percorrem a estrada mantendo assim uma esperança de continuar vivas. Seres como todos nós , feitos de medo e de esperança, que caminham sem destino, que montam o seu número para ganhar um pão, uma sopa.
Olhando para esta fotografia, a primeira novidade é a cor depois de um filme integralmente a preto e branco, uma história cinzenta e triste.
Num tempo em que nos afogam de informação e cada vez mais nos afastam do conhecimento vão criando monstros executantes que perdem mais tempo a acariciar máquinas do que a cumprimentar o seu semelhante, a dar-lhe a mão. Fora do conhecimento estamos fora do entendimento sobre os outros, sobre o mundo, sobre nós mesmos. Deixando de perceber quem somos transformamo-nos em máquinas incapazes de ler a mais elementar emoção, incapazes de reconhecer a sua natureza.
Zampanó e Gesulmina estão condenados embora continuem humanos. Sentem o medo, a esperança, o humor. Porque a sobrevivência lhes ocupa todas as horas do dia não têm tempo para luxos como as emoções. Só as sentem enquanto mais uma oportunidade perdida, algo que ficou lá para trás na voragem de sobreviver.
“La Strada” é este monumento sobre a fragilidade humana que muitos julgaram ser possível trocar por alguma segurança, por alguma dignidade, pela simples atitude de quem não esquece uma lição aprendida. Puro engano. Por alguma razão escondida na inutilidade dos segredos, o pior que a Humanidade tem para (se) oferecer é sempre aquilo que prevalece. A justiça e a dignidade humanas são caprichos, breves sopros apagados nas leis. Restam-nos os remorsos de Zampanó, a terna memória de Gesulmina, o génio de Fellini. Resta-nos esta fotografia tão familiar e ao mesmo tempo tão querida para um jovem adolescente que compreendeu demasiado cedo uma série de conceitos que não lhe serviram para nada.


Artur 


1 comentário:

Hélder disse...

Teria 11 ou 12 anos, a primeira vez que vi La Strada.
Levava-me a um universo distante, desconfortável e que me desconcertava.
Vi várias vezes, nunca conseguindo deixar de o ver cada vez que o apanhava.
Como tu dizes, um 'tudo do cinema', um enche-almas, um enriquecedor, como o cinema deve ser.
Abraço.