quarta-feira, 28 de maio de 2014

O TEMPO SEM MORADA NENHUMA


Sempre julguei que os indivíduos desapareciam antes das suas memórias. Mais uma vez estava enganado. No meu caso, ou melhor, no caso da minha geração que nunca foi exemplo para coisa nenhuma, tudo se tem vindo a passar precisamente ao contrário. Referências urbanas, ideológicas, estéticas ou simplesmente recreativas vão sucumbindo umas atrás das outras a um ponto que começo a ter dificuldades em perceber se alguma vez tive um passado, se cheguei a existir realmente. Não bastou ter morrido tanta gente da minha idade nos anos loucos da juventude, não bastou termos atravessado o tempo embrulhados num manto de silêncio e indiferença pelos ventos da História. Marcos urbanos vão caindo um após outro deixando-nos isolados, cada vez mais sozinhos, cada vez mais inexistentes. A escola provisória de Algés onde fizemos o 12º ano, o cinema Europa das matinés infantis, o pavilhão dos concertos em Cascais, o café das primeiras paixões, o bar da juventude e das intermitências da idade adulta. Tudo fecha ou é demolido para dar lugar a condomínios anónimos, tudo desaparece encurtando o espaço de recordar. Temo mesmo ser abordado em breve por um jovem cientista de I Pad em punho que me fará um breve questionário que começará pela pergunta se fui jovem nos idos de 80 do século passado. No fim colocar-me-á uma etiqueta no pé, indicando-me a direcção de um museu qualquer. Lá serei recebido por uma  outra jovem que me olhará inicialmente com um ar desconfiado e me dará um frasco de formol antes de me indicar para que armário e em que prateleira me hei-de colocar. Cá fora uma placa explicará aos visitantes a minha espécie, idade, para que o futuro tenha uma referência cronológica de uma geração que ninguém percebeu que andou por aqui. Ficarei na Ala dos Vencidos e Indiferentes dois armários depois dos veteranos da I Guerra e dos prematuros mortos do Orfeu e da Liberdade perdida para o Estado Novo, mesmo ao lado dos desperdiçados pela repressão da ditadura, da Guerra Colonial e do vazio criado pela revolução entre dois regimes, pelos pioneiros das overdoses e dos veteranos que nunca mais encaixaram em lado nenhum.  Seremos ocasionalmente visitados por crianças ranhosas e adolescentes arrogantes que nos deitarão olhares breves de indiferença enquanto escarafuncham o nariz.
A Vida, a quem nunca demos muita importância por uma ou outra razão, o Mundo a quem sempre desprezámos, a sociedade a quem sempre recusámos vendermo-nos pagaram-nos na mesma moeda. Nada a dizer.  Não fomos os primeiros nem seremos os últimos a quem isso acontece. A geração dos nossos pais continua a tratar-nos por “putos” apesar de muitos já terem 50 anos. Nada do que fazemos os impressiona, um tratado académico é abordado como uma bonita redacção da escola primária. O mundo será o que sempre foi, uma quinta deles até que morram todos e, quando isso acontecer, haverá uma geração mais nova e mais bem preparada que nós para assumir a gestão desta exploração agrícola malcheirosa. Nós seremos apenas memórias sem memória, curiosidades museológicas com alguma experiência e conhecimento, breves referências de um tempo que se apagou a si próprio. Uma geração que nunca foi, uma juventude do silêncio, uma idade adulta da indiferença. Nunca cá estivemos mesmo quando brevemente julgámos estar em algum sítio. Porque esse sítio não existe e se transformou num condomínio anónimo, num parque de estacionamento, numa merda qualquer politicamente correcta. Tudo coisas que nunca quisemos ser.


Artur

Sem comentários: