Sempre julguei que os indivíduos
desapareciam antes das suas memórias. Mais uma vez estava enganado. No meu
caso, ou melhor, no caso da minha geração que nunca foi exemplo para coisa
nenhuma, tudo se tem vindo a passar precisamente ao contrário. Referências
urbanas, ideológicas, estéticas ou simplesmente recreativas vão sucumbindo umas
atrás das outras a um ponto que começo a ter dificuldades em perceber se alguma
vez tive um passado, se cheguei a existir realmente. Não bastou ter morrido
tanta gente da minha idade nos anos loucos da juventude, não bastou termos
atravessado o tempo embrulhados num manto de silêncio e indiferença pelos
ventos da História. Marcos urbanos vão caindo um após outro deixando-nos
isolados, cada vez mais sozinhos, cada vez mais inexistentes. A escola
provisória de Algés onde fizemos o 12º ano, o cinema Europa das matinés
infantis, o pavilhão dos concertos em Cascais, o café das primeiras paixões, o
bar da juventude e das intermitências da idade adulta. Tudo fecha ou é demolido
para dar lugar a condomínios anónimos, tudo desaparece encurtando o espaço de
recordar. Temo mesmo ser abordado em breve por um jovem cientista de I Pad em
punho que me fará um breve questionário que começará pela pergunta se fui jovem
nos idos de 80 do século passado. No fim colocar-me-á uma etiqueta no pé,
indicando-me a direcção de um museu qualquer. Lá serei recebido por uma outra jovem que me olhará inicialmente com um
ar desconfiado e me dará um frasco de formol antes de me indicar para que
armário e em que prateleira me hei-de colocar. Cá fora uma placa explicará aos
visitantes a minha espécie, idade, para que o futuro tenha uma referência
cronológica de uma geração que ninguém percebeu que andou por aqui. Ficarei na
Ala dos Vencidos e Indiferentes dois armários depois dos veteranos da I Guerra
e dos prematuros mortos do Orfeu e da Liberdade perdida para o Estado Novo,
mesmo ao lado dos desperdiçados pela repressão da ditadura, da Guerra Colonial
e do vazio criado pela revolução entre dois regimes, pelos pioneiros das
overdoses e dos veteranos que nunca mais encaixaram em lado nenhum. Seremos ocasionalmente visitados por crianças
ranhosas e adolescentes arrogantes que nos deitarão olhares breves de
indiferença enquanto escarafuncham o nariz.
A Vida, a quem nunca demos muita
importância por uma ou outra razão, o Mundo a quem sempre desprezámos, a
sociedade a quem sempre recusámos vendermo-nos pagaram-nos na mesma moeda. Nada
a dizer. Não fomos os primeiros nem
seremos os últimos a quem isso acontece. A geração dos nossos pais continua a
tratar-nos por “putos” apesar de muitos já terem 50 anos. Nada do que fazemos
os impressiona, um tratado académico é abordado como uma bonita redacção da
escola primária. O mundo será o que sempre foi, uma quinta deles até que morram
todos e, quando isso acontecer, haverá uma geração mais nova e mais bem
preparada que nós para assumir a gestão desta exploração agrícola malcheirosa.
Nós seremos apenas memórias sem memória, curiosidades museológicas com alguma
experiência e conhecimento, breves referências de um tempo que se apagou a si
próprio. Uma geração que nunca foi, uma juventude do silêncio, uma idade adulta
da indiferença. Nunca cá estivemos mesmo quando brevemente julgámos estar em
algum sítio. Porque esse sítio não existe e se transformou num condomínio
anónimo, num parque de estacionamento, numa merda qualquer politicamente
correcta. Tudo coisas que nunca quisemos ser.
Artur
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