Esta extraordinária fotografia
reporta-se a um momento de pausa nas filmagens de “La Strada” de Federico
Fellini e conta a bonita idade de 60 anos. Nela podemos ver à direita Giulietta
Massina, eterna companheira do realizador, descontraída a olhar para a câmara.
À esquerda está um Anthony Quinn concentrado nas voltas daquilo que parece ser
um pedaço de arame. Quando vi este filme pela primeira vez ainda não tinha
vinte anos, e no fim, senti que tinha tirado uma licenciatura em filosofia de
vida, um mestrado em Cinema e um doutoramento em comportamento humano sem me
levantar da cadeira.
Sobre “La Strada” podiam
escrever-se centenas de artigos sem que se esgotassem os temas. Para começar, o
diálogo eloquente e a oposição entre Neo- realismo e Surrealismo no Cinema era
suficiente para ocupar horas de debate acerca da componente formal.
Ao reencontrar o grande Zampanó e
a sua assistente Gesolmina sentados ao pé de um circo de lona remendada tudo
volta a ser objecto de pasmo e ternura. Antes de mais, a história destes
personagens é um profundo ensaio sobre a fragilidade. Dois saltimbancos pobres
e limitados percorrem estradas e povoados de uma terra tão pobre como eles
exibindo o seu número. Ela anuncia e ele quebra uma corrente de aço com a força
da caixa torácica em troco de algumas moedas, de uma refeição. Ocasionalmente
juntam-se a um circo. São almas frágeis, limitadas que percorrem a estrada
mantendo assim uma esperança de continuar vivas. Seres como todos nós , feitos
de medo e de esperança, que caminham sem destino, que montam o seu número para
ganhar um pão, uma sopa.
Olhando para esta fotografia, a
primeira novidade é a cor depois de um filme integralmente a preto e branco,
uma história cinzenta e triste.
Num tempo em que nos afogam de
informação e cada vez mais nos afastam do conhecimento vão criando monstros
executantes que perdem mais tempo a acariciar máquinas do que a cumprimentar o
seu semelhante, a dar-lhe a mão. Fora do conhecimento estamos fora do entendimento
sobre os outros, sobre o mundo, sobre nós mesmos. Deixando de perceber quem
somos transformamo-nos em máquinas incapazes de ler a mais elementar emoção,
incapazes de reconhecer a sua natureza.
Zampanó e Gesulmina estão
condenados embora continuem humanos. Sentem o medo, a esperança, o humor.
Porque a sobrevivência lhes ocupa todas as horas do dia não têm tempo para
luxos como as emoções. Só as sentem enquanto mais uma oportunidade perdida,
algo que ficou lá para trás na voragem de sobreviver.
“La Strada” é este monumento
sobre a fragilidade humana que muitos julgaram ser possível trocar por alguma
segurança, por alguma dignidade, pela simples atitude de quem não esquece uma
lição aprendida. Puro engano. Por alguma razão escondida na inutilidade dos segredos,
o pior que a Humanidade tem para (se) oferecer é sempre aquilo que prevalece. A
justiça e a dignidade humanas são caprichos, breves sopros apagados nas leis.
Restam-nos os remorsos de Zampanó, a terna memória de Gesulmina, o génio de
Fellini. Resta-nos esta fotografia tão familiar e ao mesmo tempo tão querida
para um jovem adolescente que compreendeu demasiado cedo uma série de conceitos
que não lhe serviram para nada.
Artur
1 comentário:
Teria 11 ou 12 anos, a primeira vez que vi La Strada.
Levava-me a um universo distante, desconfortável e que me desconcertava.
Vi várias vezes, nunca conseguindo deixar de o ver cada vez que o apanhava.
Como tu dizes, um 'tudo do cinema', um enche-almas, um enriquecedor, como o cinema deve ser.
Abraço.
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