João Bénard da Costa chamou-lhe um filme equívoco e sublime, cheio de desvios e "atravessado por inspirações e pulsões contraditórias". O conde Luchino Visconti di Modrone, aristocrata descendente dos Duques de Milão, marxista, ex-militar e criador de cavalos de corrida, tinha cinquenta e quatro anos quando se sentou com um grupo de amigos a escrever o argumento do filme Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os seus irmãos). Havia já realizado a encenção de diversas obras de Shakespeare, Goldoni e Beaumarchais, criado cinco longas-metragens e dispunha-se, ainda segundo Bénard da Costa, a retomar a trilogia iniciada com La Terra Trema que não teve continuidade. Ao redor da mesa sentaram-se ,a princípio, Visconti, Suso Cecchi d'Amico e Vasco Pratolini, que constam como autores do argumento. E, pelos vistos, tinham muito presente a novela "Il Ponte della Ghisolfa", de Giovanni Testori, da qual extraíram alguns episódios. O guião e os diálogos definitivos estão assinados por D'Amico, Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa, Enrico Medioli e Visconti.
Torna-se evidente que na redação do texto entraram em choque frontal dois postulados que reflectem concretamente a contradição interna de Visconti: por um lado, o neorealismo mais pragmático e analítico, que nos descreve um drama social numa larga exposição, que ocupa toda a primeira parte do filme, na qual o protagonista é o núcleo familiar que vive a angústia da emigração, o desenraízamento e a miséria. Por outro lado, uma vez estabelecidos os princípios de denúncia dessa situação (comum a muitos milhares de pessoas emigradas das regiões mais pobres de Itália para os grandes centros industriais do norte), justamente quando a família começa a sair da miséria, somos submergidos num melodrama absolutamente impúdico e individualista ("Verdi e o melodrama italiano foram o meu primeiro amor; a minha obra tem sempre algo de melodramático", declarou Visconti aos "Cahiers du Cinéma"), numa tragédia grega onde o conflito não se estabelece na luta de classes mas no confronto entre irmãos, essa febre de amor-ódio entre o bom Rocco e o perverso Simone. Se todas as famílias contêm em si os germes de conflitos insanáveis ou de psicoses fatais, esta família torna-se o palco de uma luta fatal entre o Bem e o Mal, sem possibilidade de redenção. Essa família que chega à estação de combois de Milão e que, como um rebanho atrás do pastor, segue e suporta a mãe, é constituída por cinco irmãos anónimos, calados, inúteis, sem iniciativa ante uma mãe-deusa, "factotum", uma força da natureza, um terramoto, uma mãe impulsiva e torpe que afugentará dos seus filhos ("unidos como os cinco dedos de uma mão") todo o objecto de desejo, todas as mulheres que se revelam como concorrentes. Personagem de outro mundo (da remota Lucânia, de onde todos vieram), esta mãe primária e inocente aprenderá de imediato, e da forma mais dolorosa, que a cidade não se rege pelas mesmas leis e regras da sua região natal. Na metrópole convivem muitos mundos. O que era inquestionável no sul profundo, é contundentemente invalidado na cidade, bastando assomar-se à casa do vizinho para perceber o choque de culturas e a incomunicabilidade entre a miséria e o passado que irrompe desde a Lucânia e o presente que se encontra em Milão: os mais pobres, na cidade, têm a riqueza ao alcance da mão, não podem ignorá-la, não podem deixar de a invejar, de aspirar a alcançá-la, custe o que custar.
Não estamos em Hollywood e Visconti dedica-se aos grandes perdedores, aos enormes vencidos: aos que, para ganharem a vida e alcançarem os seus sonhos aprendem boxe, ou seja, a sofrer e a provocar danos para o prazer alheio. A cidade, Milão, representa uma civilização prevertida que se diverte com gladiadores modernos, que goza vendo como estas personagens se destróem no ringue. E destróem-se realmente: a dimensão dessa destruição é representada por Simone. E quando Rocco, aceita entrar no mundo do boxe, tememos que a sua sorte será a mesma e que o seu destino seja um reflexo exacto da degradação do irmão. Tememos que, tal como deseja, nunca regresse à Lucânia e não volte a ver a Lua erguer-se sobre as montanhas. E mesmo que Ciro trabalhe na Alfa-Romeo e Vincenzo progrida no seu trabalho, mesmo que haja uma esperança remota para Lucca, a família desagrega-se: já não estão unidos como os cinco dedos de uma mão. De certo modo, Rocco é um veículo para o pensamento de Visconti que, em várias ocasiões afirmou que os italianos não mereciam a Itália, deplorando a tendência para negligenciarem o imenso legado cultural, permitindo a degradação de monumentos e paisagens. E neste filme lamenta que os camponeses do sul se vejam obrigados a demandarem o norte, que se desenraízem e se metam numa aventura cujas regras de jogo não conhecem, acabando degradados e destruídos. Podem triunfar modestamente, sobreviver, melhorar a sua condição; nunca mais serão os mesmos. Algo dentro deles se quebrou e não poderá nunca ser reconstruído.
A partir da vasta representação da catástrofe da desintegração familiar, Visconti deixa de interessar-se pela dimensão social do relato, dedicando-se ao melodrama dos dois irmãos e da prostituta. Dando por adquirido que ficou claro o modo como aqueles rapazes humildes, despistados e campónios do princípio do filme tenham chegado a ser como são, passa a relatar uma intensa e perturbadora história de amor e de ódio. Se a moral da primeira parte do filme faz referência aos movimentos migratórios e às terríveis consequências do desenraízamento, a moralidade do melodrama fala-nos de um antigo conceito de família, totalmente alheio à grande cidade, que o converte numa devastadora enfermidade. Uma enfermidade estarrecedora que transforma radicalmente em ódio todo o amor que não seja materno-filial ou fraterno. E teríamos que regressar aqui a uma reflexão acerca da psicose familiar, ou da família como um nó de insuportáveis tensões emocionais que a transforma por vezes numa trituradora de indivíduos e das suas consciências. "É necessário um sacrifício para que a casa se erija solidamente.", diz alguém no filme. E, se identificarmos casa com família, trata-se de conseguir que a família Parondi conservasse a sua solidez, o sacrifício foi realizado. A vítima foi Nadia, a mulher cobiçada e partilhada por Rocco e Simone e que tanto perturbou as suas vidas. E o filme acaba com os dois irmãos estendidos na cama, chorando juntos, consolando-se mutuamente, enquanto a mãe-bruxa grita, quase com gozo, que finalmente se livraram da puta. Mas o sacrifício não serviu para nada: os sacrifícios aos deuses são próprios das antigas mitologias, ou de outras civilizações que nada têm que ver com os néons da cidade, nem com os asfalto, nem com os Alfa-Romeos produzidos na indústria onde trabalha Ciro. Este irmão, o integrado nas regras do jogo, vaticina que Rocco (empenhado até ao pescoço para pagar as dívidas de Simone), condenando a lutar boxe até as forças se esgotarem, jamais voltará à saudosa região de oliveiras, da Lua e do arco-íris.
2 comentários:
Brilhante ! É um dos poucos filmes de Visconti que não vi e agora vou a correr ver se o arranjo. Lembro-me muitas vezes do tom apaixonado com que sempre te referias a Visconti e a veneração que lhe dedicavas e que, por extensão, todos passámos a venerar. Muito bom texto !
Nuno Simas
Um filme como tantos outros, vistos há demasiado tempo e que as tuas palavras despertam a vontade de voltar a ver.
Abraço Arnaldo.
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