sexta-feira, 14 de junho de 2013

MY HEART BELONGS TO DADDY



1954, Califónia. Milton Greene fotografa Marilyn Monroe sentada num descapotável negro (um Cadillac ?) numa rua de Los Angeles, com três palmeiras barbudas e desidratadas como únicas testemunhas. À vista desarmada parece ser meio-dia e nem uma brisa no horizonte (as palmeiras não se mexem), apesar da cabeleira sabiamente despenteada da actriz, destinada a evidenciar e sublinhar o seu temperamento juvenil. Sabemos que as madeixas rebeldes fazem as crianças turbulentas e inversamente. Vestida de calças de ganga e uma camisa rosa apertada por cima da cintura, a actriz posa como uma "college girl", apertando contra o peito uma fotografia de Abraham Lincoln: um casal improvável e fantasmático. Olhos de corça para a mulher-criança no seu paroxismo hollywoodiano contra as sobrancelhas austeras do pai da Nação captado para a eternidade e, no papel improvisado do padre, Milton Greene oferece-lhes a benção fotográfica. Portanto, um casamento impossível, não somente pelas razões cronológicas manifestas, mas também porque convoca duas figuras antinómicas e irreconciliáveis : em 1954 os velhos pais não se deitam (pelo menos oficial e publicamente) com as mulheres-crianças, e isso por razões sociais, culturais ou tecnológicas: na mesma ordem 1) os velhos pais são o produto de uma educação puritana consolidada à força de água benta; 2) alguns leram Freud e Lévi-Strauss a propósito do princípio universal da proibição do incesto, o que não os ajudou a libertarem-se; 3) o Viagra ainda não tinha sido inventado.





Itália, no presente. Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano e septuagenário convicto (mas não inteiramente convencido) das virtudes das técnicas artificiais de rejuvescimento (ou de reboco da fachada), convida-se com todos os seus implantes capilares para a celebração dos dezoito anos da jovem Noémie Letizia, que lhe chama afectuosamente paizinho e salta sobre os seus joelhos depois de ter aprendido a  pronunciar FORZA ITALIA ! Não foi a primeira vez que o Cavaliere se rendeu ao apelo pré-púbere, mas desta vez a pulsão custou-lhe o divórcio. Nesta fotografia deslumbrante, vemos a jovem na mesma pose que Marilyn Monroe, em versão Renascimento italiano: cabeleira loura ao jeito de Boticelli, sorriso de Mona Lisa, segura nas mãos o retrato do Presidente e parece prestes a sussurar, como Norma Jean, "My heart belongs to daddy". O seu corpo, provavelmente, também. Esta comparação incongruente por falsas lolitas interpostas, susceptível de provocar diversos ataques cardíacos ao clube de fãs de Abrahem Lincoln, pouco satisfeitos de o verem em companhia de tão ridícula figura, tem o mérito de apontar para um deslizamento semântico assaz interessante: se Lincoln representa (e não apenas para Marilyn) o arquétipo do velho pai em vias de extinção, Berlusconi, ele mesmo, encarna a caricatura da antiga beldade em expansão. Segundo Pasolini, que conhecia bem a matéria das circunvoluções familiares, a história, é a paixão dos filhos que procuram compreender os pais. É preciso que os segundos deixem respirar os primeiros. O cineasta Marco Tullio Giordana declara numa entrevista de 2008 aos "Cahiers du Cinéma", enervando-se com a vulgaridade e cinismo do governo italiano: "As pessoas que dirigem este país são velhas, mas não são da Antiguidade, esses velhos que dispunham do saber e da experiência. Trata-se de velhos que detestam os jovens e com eles rivalizam. Esses filhos querem as jovens filhas dos jovens."


Portugal, 2013. Desde alguns dias, sente-se a Primavera a martelar no menor interstício urbano. A miséria do Inverno parece desaparecer a toda a velocidade para dar lugar a uma energia vegetal e animal que estás prestes a fazer vergar tudo. Pequenos caules de ervas pálidas alinham-se como soldados de sentinela, desde que haja três milímetros quadrados de terra entre os paralelipípedos. Cachos de jovens estudantes aglutinados nas esplanadas dos cafés ou dispostos em grupos informes sobre o relvado dos parques, exprimindo barulhentamente o seu contentamento assim que surgem no horizonte decotes, saias minis e outros signos da feminilidade já estival, que julgam exibida em sua intenção, e somente em sua intenção. Podemos sentir a seiva a inchar em tudo o que é dotado do menor filamento de ADN, do limoeiro ao castanheiro, passando pelo labrador retriever ou pela andorinha nas alturas.

Sem comentários: