1954, Califónia. Milton Greene fotografa Marilyn Monroe sentada num descapotável negro (um Cadillac ?) numa rua de Los Angeles, com três palmeiras barbudas e desidratadas como únicas testemunhas. À vista desarmada parece ser meio-dia e nem uma brisa no horizonte (as palmeiras não se mexem), apesar da cabeleira sabiamente despenteada da actriz, destinada a evidenciar e sublinhar o seu temperamento juvenil. Sabemos que as madeixas rebeldes fazem as crianças turbulentas e inversamente. Vestida de calças de ganga e uma camisa rosa apertada por cima da cintura, a actriz posa como uma "college girl", apertando contra o peito uma fotografia de Abraham Lincoln: um casal improvável e fantasmático. Olhos de corça para a mulher-criança no seu paroxismo hollywoodiano contra as sobrancelhas austeras do pai da Nação captado para a eternidade e, no papel improvisado do padre, Milton Greene oferece-lhes a benção fotográfica. Portanto, um casamento impossível, não somente pelas razões cronológicas manifestas, mas também porque convoca duas figuras antinómicas e irreconciliáveis : em 1954 os velhos pais não se deitam (pelo menos oficial e publicamente) com as mulheres-crianças, e isso por razões sociais, culturais ou tecnológicas: na mesma ordem 1) os velhos pais são o produto de uma educação puritana consolidada à força de água benta; 2) alguns leram Freud e Lévi-Strauss a propósito do princípio universal da proibição do incesto, o que não os ajudou a libertarem-se; 3) o Viagra ainda não tinha sido inventado.
Itália, no presente. Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano e septuagenário convicto (mas não inteiramente convencido) das virtudes das técnicas artificiais de rejuvescimento (ou de reboco da fachada), convida-se com todos os seus implantes capilares para a celebração dos dezoito anos da jovem Noémie Letizia, que lhe chama afectuosamente paizinho e salta sobre os seus joelhos depois de ter aprendido a pronunciar FORZA ITALIA ! Não foi a primeira vez que o Cavaliere se rendeu ao apelo pré-púbere, mas desta vez a pulsão custou-lhe o divórcio. Nesta fotografia deslumbrante, vemos a jovem na mesma pose que Marilyn Monroe, em versão Renascimento italiano: cabeleira loura ao jeito de Boticelli, sorriso de Mona Lisa, segura nas mãos o retrato do Presidente e parece prestes a sussurar, como Norma Jean, "My heart belongs to daddy". O seu corpo, provavelmente, também. Esta comparação incongruente por falsas lolitas interpostas, susceptível de provocar diversos ataques cardíacos ao clube de fãs de Abrahem Lincoln, pouco satisfeitos de o verem em companhia de tão ridícula figura, tem o mérito de apontar para um deslizamento semântico assaz interessante: se Lincoln representa (e não apenas para Marilyn) o arquétipo do velho pai em vias de extinção, Berlusconi, ele mesmo, encarna a caricatura da antiga beldade em expansão. Segundo Pasolini, que conhecia bem a matéria das circunvoluções familiares, a história, é a paixão dos filhos que procuram compreender os pais. É preciso que os segundos deixem respirar os primeiros. O cineasta Marco Tullio Giordana declara numa entrevista de 2008 aos "Cahiers du Cinéma", enervando-se com a vulgaridade e cinismo do governo italiano: "As pessoas que dirigem este país são velhas, mas não são da Antiguidade, esses velhos que dispunham do saber e da experiência. Trata-se de velhos que detestam os jovens e com eles rivalizam. Esses filhos querem as jovens filhas dos jovens."
Portugal, 2013. Desde alguns dias, sente-se a Primavera a martelar no menor interstício urbano. A miséria do Inverno parece desaparecer a toda a velocidade para dar lugar a uma energia vegetal e animal que estás prestes a fazer vergar tudo. Pequenos caules de ervas pálidas alinham-se como soldados de sentinela, desde que haja três milímetros quadrados de terra entre os paralelipípedos. Cachos de jovens estudantes aglutinados nas esplanadas dos cafés ou dispostos em grupos informes sobre o relvado dos parques, exprimindo barulhentamente o seu contentamento assim que surgem no horizonte decotes, saias minis e outros signos da feminilidade já estival, que julgam exibida em sua intenção, e somente em sua intenção. Podemos sentir a seiva a inchar em tudo o que é dotado do menor filamento de ADN, do limoeiro ao castanheiro, passando pelo labrador retriever ou pela andorinha nas alturas.
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