terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A PACAÇA E O LEÃO


(João Franco, o chefe do Governo)
Pelo que me contou depois Humberto Avelar, pelo que eu sabia, pelo que apurei do relato dissonante das gazetas e o que eu rectifiquei in loco com um dos conjurados e um falso regicida, que para o caso também conta como havendo elaborado do sucesso a síntese mais verosímil que convinha ao seu papel, os factos deviam ter-se passado deste modo: Debalde o grupo fora esperar João Franco à Rua Alexandre Herculano. O ditador, sabendo-se em perigo e acossado de um lugar para o outro, entrou mais uma vez a negacear os perseguidores. Não lhe era difícil, dispondo dos órgãos de informação e torcendo-lhes as voltas. Os seus vários domicílios permitiam-lhe este jogo do Escondidinho.
…… (Buiça) e Alfredo Costa passaram ao Rossio, a grande sala revolucionária, e aí deliberaram ir esperar Franco ao Terreiro do Paço, à hora do regresso da Família Real. Para Costa já fazia parte do programa, dada a hipótese do golpe falhar na rua para onde Franco anunciara ter mudado da Rua da Emenda. Isoladamente, os homens dos Olivais atrás, e par a par, se dirigiram com boa meia hora de antecedência para o Terreiro do Paço. Escalonando-se pela praça, Alfredo Costa tomou a posição do fundo, próximo do embarcadoiro, os três ficaram a deambular ao meio, da estátua de D. José para o centro da ala ocidental contra as arcadas, como ociosos, e Buiça postou-se na fímbria norte, não bem sobre o lancil, mas perto ou encostado ao candeeiro, na linha do prolongamento da Rua do Ouro, na atitude de indivíduo que esperava outro, conforme entrevista marcada.
Constava do seu plano aguardarem ali João Franco, como caminho necessário para o cais……Não, sorrateiramente tinha ele entrado pelo porta do Arsenal e daí transitado ao embarcadoiro, palmilhando de relâmpago o curto espaço a descoberto que dá aceso pelo sul ao Pavilhão da Marinha.
….Apareceu, depois de grandes delongas, que mais agravaram a hiperestesia dos conjurados, em daumont , a Família Real, os reis lado a lado, os príncipes em frente. Seguiu-se o carro com os camaristas, em vez do de D.Afonso, que se atrasara. E, no seu ritmo, o dos áulicos, e toda a cauda cometária de palacianos. E João Franco? João Franco sumira-se novamente como um trasgo.
Desesperado com o malogro, mas ainda retido por um resto de expectativa, a que é vulgar atribuir-se a escrúpulo de consciência, Alfredo Costa chegou de dois passos ao pé de Domingos Ribeiro:
- Corra lá acima a dizer ao Buiça que o filho de um cão tornou a escapar-nos…
…. Mas, ou porque o esporeasse a impaciência ou no seu espírito se desse por inútil continuar de atalaia, largou a grandes passadas pelo terreiro da praça acima, coisa de dois a três metros à banda do lancil. E dum pulo estava ao pé do Buiça, engoiado no gabão, no jeito inteiriço de homem muito crispado por uma ideia fixa, e repetiu a mensagem:
- O filho de um cão escapou-se!....... E agora?... Se liquidássemos a cambada?
….Buiça desencostando-se do candeeiro, respondeu:
- Vamos a eles!
(O rei D. Carlos)

Fez um gesto a indicar a posição que ia tomar. Costa soprou para os três:
- Defendam-nos a retaguarda!
Já Buiça de um salto, se plantava em diagonal para a carruagem, a um terço da largura da rua, hirto como um atirador; sacudia para trás as abas do capote e, metendo a carabina à cara, visava. Alfredo Costa, por sua vez, caía sobre a carruagem que passava na frente. Foi mais rápido do que se conta. Crepitou o tiroteio das armas de fogo e no primeiro minuto os assaltantes ficaram donos do terreno. Mas o oficial que galopava à estribeira, tenente Francisco Figueira, recobrando-se, precipitou à espadeirada sobre Buiça. A polícia, perante a sua acometida, ressarciu-se também e rompeu a disparar a torto e a direito sobre os vultos que se lhe afigurou fazerem parte da conjura. Dois agentes, quando Alfredo Costa cambaleava, lançaram-lhe a mão, e ao passo que o arrastavam para a esquadra, iam disparando os revólveres sobre ele, refeitos em sem domínio. Buiça continuava a estrebuchar com a carabina, acutilado pelo oficial às ordens, e tentando desenvencilhar-se dum soldado que se lhe viera meter entre as pernas.
D. Carlos tinha caído cerce como um roble, debaixo por certo das balas de Buiça, e igualmente o Príncipe alvejado à queima-roupa por Costa. Então a carruagem real largou à desfilada, seguida pelas outras, tomadas de terror.
……….Observei a Humberto:
- É estranho que dois homens de são entendimento tivessem variado assim de chofre num caso de tanta magnitude. Quem acredita que não procedessem segundo longa e madura premeditação?
- Psicologicamente compreendo muito bem que assim houvesse ocorrido. Costa e Buiça tinham largado de casa, como os caçadores em África, numa batida à pacaça. Não descobriram a pacaça e rompeu-lhes o leão………Seja como for, o rei foi vítima das manobras e andanças tortuosas do seu primeiro-ministro. Se este calcorreasse pelos trilhos comuns, nunca o rei pateava. Pateava ele…………………………………
- Suponhamos. Mas eu continuo na minha: a morte do rei foi contraproducente.
Ver-se-ia. Em boa lógica devia ser assim. Mas a lógica era um relógio desacertado para quem quisesse ler a hora política da nossa terra. Por exemplo, compreendia-se que, depois da morte de D. Carlos João Franco teimasse em querer ficar à testa do governo? Pois não aspirava a outra coisa. (…) Esperava que a rainha (…) o mantivesse. Mas não, sacudiu-o e sacudiu-o com enjoada repulsa. Tanto ela como a rainha-mãe, ante os dois cadáveres reais, estendidos no chão do Arsenal sobre uma enxerga, haviam soltado a voz de exprobação: - Veja a sua obra!
(Princípe D. Luis Filipe)

“Expulsaram-me do poder” – assim se exprimia em correspondência para o visconde de Cortegaça.

Aquilino Ribeiro

“Um Escritor Confessa-se”

Bertrand Editora, 2008

Pgs.268 e seguintes

1 comentário:

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