sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

BOA NOITE PARA VOCÊS



Cumprimento as ruas do meu bairro num andamento vagaroso e tranquilo a caminho de casa. No eco dos meus passos ouço memórias que me abordam em cada esquina como conhecidos de longa data. Um bêbado militante que nunca cheguei a saber como se chamava e com quem joguei à bola. Nada do que ele dizia fazia sentido, as suas palavras decifravam uma língua estrangeira que só à noite se tornava perceptível. A cantar o fado perdido no frio e no escuro, as letras chegavam-me aos ouvidos em madrugadas de estudo. Treinador estrangeiro de futebol durante o dia, fadista português à noite. Ou a senhora que passeava com vários cães presos por cordéis a fazer de trelas. Cumprimenta-me com o mesmo olhar doce e triste de sempre e conta-me mais uma lengalenga, como aquela que começava…”À morte não escapa ninguém…” E despedia-se a agitar sacos de plástico, cordéis que faziam de trelas e três ou quatro rafeiros que lhe obedeciam calados e tristes como os seus olhos: “Em estrangeiro, good night”. Mesmo depois de saber que morreu num incêndio da barraca onde vivia, a sua voz cumprimenta-me…”Em estrangeiro, good night” Boa noite para si também. E para o fadista, e para aquele gato que me apareceu debaixo de um carro saudando-me com um miado de dor e uma pata no ar. Deixei-o em casa do “Fininho” que era veterinário, e arribou.
Noites de Verão a jogar frisbee no átrio da igreja, partidas intermináveis de futebol, carícias clandestinas de namoradas vizinhas, ou amigas…carícias que sabiam a praias de areias douradas.
O passo torna-se lento e os ombros carregam o peso de todas as derrotas numa puta de uma vida que nunca fez sentido. A vocês me encosto a fumar um charro melancólico perante o vosso ar compreensivo, esquinas da minha memória. A vocês confesso o meu cansaço e vontade de acabar, vozes saídas de sombras, amores-perfeitos feitos de memória, passos recordados, esquinas do tempo. Tem muita piada ser como o D. Quixote quando se tem força, paciência, capacidade para resistir. Mas até ele deu em maluco para que a consciência adormecesse e não percebesse o que se estava a passar. As suas derrotas pelos moinhos de vento, a boçalidade de um escudeiro espertalhão, o amor inexistente da Dulcineia. Mas aqui, não. A consciência enterra-se como uma lâmina na carne do Ser e, lentamente, vai asfixiando a vontade, limitando a força, enfraquecendo o coração. Quando morrer, é para estas ruas que vou querer deambular. Para cumprimentar os que ficam, contar-lhes lengalengas, observar-lhes as bebedeiras. E despedir-me no fim com uma máxima qualquer, uma frase de circunstância. “À morte não escapa ninguém…em estrangeiro, good night
Artur

2 comentários:

elbett disse...

Good night!!!
Bem bonito este mês de Fevereiro!!!
Estou farta de funerais e hospitais!! De "ais" em geral!!
Bonito mesmo é o texto!!!
Bjos

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Elsa. Good night and good luck. Beijinhos.