terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

ENTRE HISTÓRIAS E ESQUINAS



Há muitos anos atrás, as nossas noites de adolescentes distribuíam-se por cervejarias, tascas e bares mais sofisticados de acordo com as posses de cada um no momento. E nalguns desses espaços fomos aos poucos conhecendo a fauna da noite, gente de várias origens e, normalmente com uma histórias no bolso ao fim do segundo jarro de vinho. Entre muitas que soube ouvir com meu entusiasmo iniciático, hoje gostava de partilhar esta com vocês, que às vezes fazem o favor de me ler. Não me lembro do nome dele, nem da idade, mas sei que era já bem veterano quando o conheci na noite de C. de Ourique. E também sei a sua história porque me fez o favor de a contar mais do que uma vez. Não se tinha passado com ele mas com o pai dele e trazia todas as porções do mistério e aventura que eu então tanto apreciava (e se calhar, ainda aprecio). Antes de continuar quero esclarecer que nestas palavras não há verdades absolutas, versões à prova de bala, nem reinterpretações da História. Há depoimentos de pessoas, contemporâneas dos acontecimentos, e indesculpáveis lacunas nos manuais de História. Pelo que não esclarecem, ou pelo que explicam mal.
Jurava-me este interlocutor a pé juntos que o pai havia sido testemunha privilegiada de uma reunião conspiratória que esteve na origem do “Regicídio”.Uma reunião entre elementos da Carbonária (anarquistas e republicanos, todos maçons) nas traseiras de um restaurante na Rua Silva Carvalho. Tratava-se de um rapazinho empregado do restaurante de uma tia (o pai do tal interlocutor) que assistiu a quase tudo. Viu por exemplo um chapéu de coco cheio de pequenos papéis com a identidade dos presentes, de onde foram retirados os nomes dos que iriam compor o comando operacional. Garantia que um dos presentes era o Aquilino Ribeiro. Enquanto se escondeu atrás de uma porta não se lembrava de ter ouvido uma única vez o nome do Rei. O alvo era João Franco (o Primeiro Ministro da altura). Porque é que os acontecimentos tomaram outro rumo, não sabia dizer. Também não sabia se o papel com o nome de Aquilino foi retirado de dentro do chapéu de coco.
A história ficou comigo durante anos, com mais dúvidas do que certezas, mais hipóteses do que factos. A escassa informação disponível nos manuais de História também não ajudava.
(Gravura sobre o Regicídio)

Foi o “Regicídio” um acto tresloucado ou uma operação bem planeada convertida em desfecho suicida? Era o Rei o alvo daquela operação? Quantos elementos compunham o comando? Dois? Três? Mais? As dúvidas foram ficando até que tropecei nas memórias de Aquilino Ribeiro. Muitos acusaram-no de revolucionário radical, chegando alguns a envolvê-lo nos planos do “Regicídio”. Em parte porque há um episódio em que o seu quarto explode enquanto ele e mais dois companheiros manipulavam explosivos. Enquanto os outros morrem nessa explosão, Aquilino sobrevive e é preso. À segunda tentativa, consegue evadir-se da prisão. Semanas depois dá-se o Regicídio. No ano da Graça de 1908, dia 1 de Fevereiro.
Ao escrever as suas memórias sob o título “Um Escritor Confessa-se”, Aquilino Ribeiro traz alguma luz sobre o que realmente aconteceu, aproveitando a posição privilegiada de ter sido próximo de alguns dos protagonistas que fizeram parte dos acontecimentos.
Descreve-os fugindo ao lugar comum da exaltação romântica ou da condenação abstracta de uma acesso de loucura. Homens como os outros, donos das suas escolhas e das consequências dos seus actos. Nunca negando a sua ligação à Carbonária, o escritor também não afirma ter feito parte do grupo que acaba por assassinar o Rei e o seu primogénito. A sua informação privilegiada vem do facto anteriormente referido, dos seus conhecimentos, tanto de protagonistas como de outros que o informaram em primeira mão.
Aquilino Ribeiro

Reeditado pela Bertrand em 2008, “Um Escritor Confessa-se” é um livro extraordinário publicado pela primeira vez em 1972 com prefácio de José Gomes Ferreira. Nele acompanhamos a vida, as memórias e as confissões da juventude de um dos maiores vultos literários do séc. XX português. Tendo vivido numa época de enormes mudanças, Aquilino trocou o seu papel de contemporâneo passivo por uma atitude de protagonista da realidade enterrando-se até aos ossos na vida e no desenho das palavras com que tão sabiamente a conseguiu ilustrar. Seguem-se duas passagens desse livro, sendo a primeira referente aos acontecimentos do dia do Regicídio e a segunda acerca dos seus envolvidos.
Mais do que procurar verdades absolutas de rigor científico inabalável, pretende-se aqui abrir o debate e alargar a reflexão. Pretende-se ampliar conhecimentos sobre acontecimentos importantes, narrados na primeira pessoa.
Artur

2 comentários:

ef disse...

escreves magnificamente

Artur Guilherme Carvalho disse...

ef, obrigado palas tuas (breves) palavras. Fica à vontade pelos corredores deste blog e não te inibas de deixar sempre o teu comentário.