quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

BUIÇA


(Manuel Buiça)
Conheci Manuel Buiça no café “Gelo”. Manuel Buiça era um dos mais assíduos frequentadores desse café, muito arrumado à margem do Rossio tumultuário, que, não obstante o berrante das fardas, conserva ainda hoje o ar plácido de botequim provincial. Às suas horas, nas meias manhãs preguiçosas de Lisboa, quando, lentas e doces, os senhores burocratas vão pelas ruas abaixo mais brandos que em liteira, ou à noite, depois do jantar, Buiça era certo à mesa branca, na parte que olha para a Rua do Príncipe, um cálice de cognac à frente, a fazer a correspondência ou cavaquear alto com conhecidos ou próximos.
Buiça não era desses que se isolam na turbamulta e precisam da turbamulta para se isolar. O Café significa para ele o cenáculo, a roda de amigos a que levava a sua amizade, a vozearia a que misturava a voz. Tão despótico era nele o instinto de sociabilidade que não sabia enxotar da sua beira indivíduos de má nota e malandrins garantidos. Dentro de si, melancólico ou a cismar, como tantos moinas de café, na avó torta ou em sapatos de defunto, nunca o encontrei, nem tal atitude era compatível com o seu temperamento vincadamente buliçoso e dispersivo. A vida exterior empolgava-o, consubstanciava-se com ele, sem lhe deixar um refolho, um canto reservado em tudo, pensamentos e obras, mais trespassável à vista que o próprio vidro.
Curioso este tipo de português, vindo do Norte, da parte mais resistentemente nacional, celta, suevo que aflorasse na linha longa das gerações, genuíno, inquieto e batalhador, do nateiro da raça. (…)
Buiça era republicano – o que ao tempo, em muitos, significava política da extrema-esquerda – contudo menos por convicção profunda que por “flâmerie” do espírito.
(…) Cavalo rebentio que aparecesse no picadeiro “Gagliardi” domava-o ele. Os seus pulsos finos aguentavam ainda firmes a espada francesa quando no assalto já os outros fraquejavam. Nas praias, mormente em Algés, a dois pulos do “Gelo” não havia braços de nadador que mais longe açoitassem o mar. Tanto a sua mentalidade como a sua cultura literária não eram comuns. Professor no Colégio Moderno, dava a impressão de possuir uma inteligência leste, muito compreensiva, assimilando sem esforço, mas também sem perdurabilidade. (…) Era isto tudo, galante, franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais de uma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral, uma ou outra anomalia medrando a meio de sentimentos que, além de serem puros, pareciam dever ser inibitórios. Assim Buiça, que era pai de família extremosíssimo, se não exacto, consagrava aos filhos uma adoração sem limites, a ponto de, tresnoitado ou embriagado, o que por vezes sucedia, se não poder deitar sem os beijar e se abraçar neles, prezando a esposa, entabulou ainda em vida dela correspondência delico-doce com uma menina de Lisboa. (…)
…ausência completa do sentimento de responsabilidades e miopia no prever as repercussões dum acto. Buiça era argamassado, em grau extremo, das virtudes e falhas da terra portuguesa, num lineamento ora confuso, ora recto, sendo as contradições a sua lógica, como o ar efemeninado a sua maior mentira.

Aquilino Ribeiro

“Um Escritor Confessa-se”

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