(Alfredo Costa)
Condenável por si, pelas leis da vida e as lições da História, condenável ainda pela sequência política, até agora nefasta, do regicídio, não quis tecer um libelo com receio duns, e muito menos uma apologia para agrado de outros. Contei o que sabia e apurei com lisura e respeito absoluto da verdade. O regicídio foi a enfloração lógica de ideias, ódios, revoltas, semeados a trouxe-mouxe por monárquicos e republicanos num solo bárbaro, propício à violência… Que tinha a esperar uma realeza mucilaginosa, atrofienta, caída no hebetismo, sem outras vistas sobre o horizonte do que conservar a pia farta?
O regicídio, em tanto que obra singular, terá de integrar-se no plano de demolição, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espíritos livres e esclarecidos, desde a época liberal até aos nossos dias. Os protagonistas foram o braço armado dessa propaganda. Apoucá-los ou engrandecê-los seria cometimento gratuito, que não cabe em cérebro com dois dedos de caco. Mas porque o regicídio em sua nebulosidade, em sua paradoxal concepção e feito, quedaria inexplicável sem o conhecimento psicológico das dramatis personnae, eu experimentei pintá-las sob todas as reservas do meu fraco entender.
Pessoas que menos se parecessem: Manuel Buiça e Alfredo Costa. Aquele era do Norte; este do Sul. Um godo, o outro árabe.
Foi no corrente de 1906 que Raul Pires apresentou no “Gelo” um rapaz de 28 anos, alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, a que ninguém ligou importância. (…) Com ele, ao contrário de Buiça, não há que ter o historiador grandes canseiras para fixá-lo. A sua figura moral inscreve-se num quadriculado de traços largos, quase rectilíneos. Era um homem de uma só peça, crente até ao iluminismo interior, instruído o que basta para reconhecer que a vida se decompõe numa tábua mais ou menos certa de problemas, de resultado dependente da vontade. (…) Alfredo Costa foi o homem, atirado para a cidade da aldeia alentejana, e que, dobrando-se sobre si, batido dos baldões, «se encontrou a marchar». Atrás, todo o atavismo da alma popular, opressões, tristeza, fatalismo, mansuetude de cordeiro. Pela frente o torvelinho do século, luz e sombras, ideias confusas, ideias desordenadas, ideias; a vida com as facetas todas; o homem em todos os planos. (…) Em 1903 em Estremoz, fez intensa propaganda republicana e daí começou a colaborar nos jornais de classe da capital, sempre homem de fé e dedicação sem limites. Foi caixeiro-viajante e presidiu à Associação dos Empregados do Comércio. (…) Encetou ainda a publicação em fascículos, distribuídos ao domicílio, do romance de índole popular: “A Filha do Jardineiro” (*) (…) A República, ou melhor, o mundo dos Idealistas, em boa verdade, não pode enjeitar este nome embora morresse em fereza. Depende das vicissitudes de uma obra o galardão que a posteridade reserva aos precursores. (…)
(António José de Almeida. Presidente da República de 1919 a 1923)
Planeada a revolução pelo risco e indústria de António José de Almeida que, para o civil, tinha como lugar-tenente Luz de Almeida, Costa “arranchava” no grupo que devia assaltar o Palácio Real, depois, por uma modificação de estratégia, o Quartel dos Lóios. Na noite de 28 de Janeiro, data fixada para o movimento que abortou desastradamente no elevador da Biblioteca, a hoste, grossa de vinte homens, tinha à sua testa Costa e Buiça e como um dos soldados de linha Humberto de Avelar, artista de raça, frágil e dedicado como uma mulher, experimentou ainda o fogo da Guarda, nas imediações da Rua de S. Bárbara, quando aguardava que um morteiro desse o sinal da revolução
A partir dessa manhã confusa e atarantada, o governo de Franco empreendeu a lógica e inevitável obra repressiva. Foram presos os membros do Directório, as personagens em evidência do partido, e daí passou-se à caça dos revolucionários subalternos. A desordem e o pavor lavraram então nas fileiras republicanas, que antes pareciam firmes e ordenadas. O Tejo e os quintais foram o coval de infinitas cestadas de bombas. (…) Fugiram para terras nunca vistas nem sonhadas ou sumiram-se pelo chão os chefes e subchefes do movimento. Franco triunfava em toda a linha.
No meio do pânico geral, Alfredo Costa era um dos conspiradores que não arredava do seu posto. Deserta e melancólica quedava a pequena sala traseira do “Gelo”, sempre tão frequentada e turbulenta. Estavam presos ou escondiam-se os intelectuais, Ferreira da Silva, Granger, Duque, arredios e avessos, aliás, às grandes aventuras cruentas. À parte Buiça, que abanava imperterritamente, os outros passavam de esfuziote, rápidos e silenciosos.
Fechados os Centros, suspensos os jornais, prisões à cunha, pelas ruas viam-se passar rebanhos inteiros de homens, enquadrados por guardas a cavalo. (…) Costa continuava livremente pela cidade, congregando os elementos que, dispersos, sobreexistiam ainda, teimando sempre, mensageiro intrépido e expeditivo daqueles que acaçapados nas luras guardavam uma réstia de esperança. Com Machado Santos e Soares Andrea se encontrou algumas vezes, a recato do sigilo de que cercavam seu asilo.
- Se algum “bufo” me deita a unha – dizia Costa palpando a “browning” na algibeira da calça – queimo-lhe os miolos.
Em pleno desânimo geral, Costa insistia sempre para que se tentasse o lance. Onde paravam os dois terços da força pública com que António José de Almeida contava para derribar a Monarquia? Onde parava toda a vasta e poderosa teia de revolucionários civis que deviam, escalonoados contra cada um dos bastiões do Poder, iniciar o ataque?
O movimento parecia travado com mão de ferro; Franco continuava a varrer o terreno implacavelmente.
(*) Escrito pelo próprio Aquilino
Aquilino Ribeiro
“Um Escritor Confessa-se”
Pgs.274 e seguintes.
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