Alfredo Costa, ao anunciar a composição do grupo que havia de ir esperar João Franco à Rua Alexandre Herculano, falou no empregado da casa de vinhos, ao Castelo, e em duas praças da Guarda Fiscal dos Olivais. Quanto ao primeiro, que eu fixara na retina como meão de estatura, magro, vibrátil, de breve lanugem no buço, deparou-se-me, no meu processo de rectificação, baixo, atarracado, pesadão, patilhas, maneiras e palavras de quem representa um papel aprendido de cor. Fiquei na persuasão de que estava perante um impostor. O verdadeiro teria cavidamente imergido na noite e daí, porventura nunca mais saiu. Os louros, que poderia reivindicar depois de 5 de Outubro, não o seduziram, talvez porque lhe repugnasse o falso ouropel ou não fosse por lá o Diabo, que as arma, convertê-lo, alguma vez, em coroa de espinhos. A sua intervenção, estrita como fora, e as condições em que se dera permitiram-lhe manter o incógnito em vida e “per omnia saecula”. Mas fosse o que eu imaginara ou a balofa personagem que me apareceu e de princípio me desconcentrou, para o caso é o mesmo. Eram figurantes que tinham jogado de porta, na tragédia, os “Faquins” do antigo teatro francês.
Os outros dois, que se não sabe por que espécie de carga de água Costa foi recrutar aos Olivais, um deles, como fica dito, José Nunes, está identificado. Ninguém iria desentocá-lo, mesmo ninguém pensaria nele se não viesse ao proscénio, coitado, calçando um coturno que se não ajusta ao seu pé. Como vimos, jogara também de porta de par com o moço do Castelo.
Ao contrário do que se pode presumir das palavras de Costa, nunca na vida fora guarda fiscal. Mas, na qualidade de habitante dos Olivais, mantinha comércio assíduo com as praças desse posto, como o próprio escreve na “Bomba Explosiva”, pág.94 “….sempre que ia aos Olivais levar ou buscar material de qualquer encomenda, aproveitava o tempo para falar aos vários soldados da guarda fiscal, com que contava para a revolução. Alguns deles já se tinham comprometido comigo em 28 de Janeiro de 1908”
Na estampa denominada “Alguns dos revolucionários onde se encontra o grupo de mineiros”, colecção de retratos, nada menos de 13, em que figuram em medalhão fardas militares, “lavalliéres”, colarinhos de enforcar segundo a moda, ao meio em losango está representado de face José Nunes. Ele é o centro da constelação. Todos se acham individuados, ao fundo da estampa, pelos seus nomes.
Páginas adiante, vem outra estampa na mesmíssima disposição, com a figura central, também em losango, revestindo o uniforme da Guarda Fiscal. Traz este título: “Alguns dos revolucionários com quem José Nunes mais de perto tratou”. O que está retratado em losango, lugar de realce, correspondente na estampa anteriormente citada a José Nunes, chama-se Adelino Marques. Porque ocupa, ele também, aquele lugar de centro planetário? Evidenciou-se em quê e quando? A “Bomba Explosiva” seria omissa de todo se na colaboração que deu para ali o estudante militar de engenharia José dos Santos Viegas não lhe fizesse esta interferência ao celebrar o Nunes. “ Conhecemo-lo há muito como revolucionário […] já fazendo propaganda aqui nos Olivais na Guarda Fiscal, onde encontrou um dedicado adepto, o guarda Adelino…”
A publicação do livro é posterior ao 5 de Outubro, todavia Adelino Marques não alardeia haver tomado parte em nenhuma algarada revolucionária. Tinha soçobrado no silêncio.
Na estampa de que se fala atrás, “Dois Homens”, da “Bomba Explosiva”, com uma interrogação no meio de três linhas de pontinhos, podia dizer-se quanto a José Nunes: gato escondido rabo de fora, se ele não estivesse a armar à auréola denunciando-se. Pelo seu longo sobretudo, maneira de pôr o chapéu, trangalhadanças, patilhas aparadas resvés com o lóbulo superior da orelha, dá-se logo a matar na figura da esquerda para quem olha. E o segundo dos “Dois Homens”? Bigode retorcido, coco na cabeça, jaquetão cintado traindo o alfaiate barato, coisa de uma mão travessa menos alto que o Nunes? Se, ao primeiro relance, procurássemos identificá-lo nos retratos da “Bomba Explosiva” poderíamos na Est. 1 tomá-lo por Virgílio de Sá e ainda por Armando Octávio Dias; na Est. 2 por vários deles, José da Cruz, Dinis Esteves, Adelino Graça, José Martins Alves e, em ultima análise, atendendo a que a fotografia do que está ao centro no losango foi feita nunca além de 1907 e a dos “Dois Homens” depois do 5 de Outubro de 1910, pode ser candidato à categoria o indivíduo retratado ao centro, em losango, Adelino Marques. (…) Nunca mais se voltara a falar dele, depois dos acontecimentos que se deram à volta do 28 de Janeiro de 1908. Primeira circunstância digna de reparo: porque figura no losango, “pendant”, na colecção, do egotista José Nunes, sol do sistema revolucionário de retratados, quando todos os circunstantes, segundo os depoimentos insertos, exibem títulos superiores ao dele?
Costa tinha referenciado: “são praças que João Franco demitiu e procuram vingar-se” Anteriormente a 3 de Fevereiro de 1908, só houve uma só praça demitida, consoante as pesquisas a que procedi. Essa baixa condiz com o nosso acerto, baseado “a priori” na declaração de Alfredo Costa e no logogrifo da “Bomba Explosiva”. Reza assim o informe fornecido na Guarda Fiscal:
“Adelino Marques teve baixa de serviço por incapacidade física em 2- 1- 908; casou-se em 1907 com Joaquina Luísa Ferreira. Foi alistado em 1902, 14 de Outubro, na Circunscrição do Sul. Nome da lesão: dacriocistite e reumático.”
Seria pois este um dos conjurados do Terreiro do Paço? Se o foi, como parece ficar estabelecido, teria de ser incriminado, por homicídio frustrado na pessoa de João Franco. Se ainda é vivo, pode dormir a sono solto. Já lá vão 54 anos. Prescreveu
Aquilino Ribeiro
"Um Escritor Confessa-se"
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