terça-feira, 27 de maio de 2025

O EUTANASIADOR


 

"Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois.” 

  Albert Camus 

 

 

 

 

Texto: Paula Guimarães 

 

Encenação: Diogo Infante 

 

Interpretação: Sérgio Praia 

 

Exibição até 29 de Junho no Teatro da Trindade 

 

 

A morte é a questão mais absoluta de todas as civilizações. O suicídio é o tema mais absoluto de toda a Filosofia. No modo como lidamos e reflectimos um e outro conseguimos encontrar a medida e o relacionamento com os nossos padrões de cultura, a nossa organização mental, o entendimento de nós próprios. 

Um homem apresenta-se-nos no palco, separado do público através de um gradeamento prisional. Uma voz off procede ao interrogatório. O crime de que é acusado? O homicídio de várias pessoas por vontade das mesmas. A partir daqui partimos numa viagem alucinante onde são descritas histórias de várias pessoas que, tendo escolhido a morte não tiveram a força ou a coragem de o fazer sozinhas. Por isso recorreram aos serviços deste homem, o Eutanasiador, que as ajudou a cumprir a sua vontade. Escolhendo o processo, assinando um contrato de prestação de serviços, assumindo a sua escolha para memória futura. 

E ao longo deste quase monólogo vamos assistir ao desenrolar de um enorme novelo de questões que são mais familiares no nosso quotidiano do que à primeira vista poderiam parecer. Logo à cabeça o direito à escolha. O direito de um indivíduo decidir soberanamente acerca do términus da sua existência, a figura clássica do suicídio. A dignidade de morrer minimizando o sofrimento e a degradação inevitáveis do corpo. A fronteira entre o conceito de crime e o de culpa. 

Apresentando-se como um ser amoral, hedonista, insensível e sedutor, o Eutanasiador acaba por se revelar ao mesmo tempo um assassino material, um manipulador e um manipulado. Fascinado pela morte vê ao mesmo tempo nessa actividade um “nicho de mercado”, uma forma de ganhar dinheiro apesar do contratempo da publicidade lhe dificultar o trabalho. Se por um lado não pode pôr um anúncio a oferecer os seus serviços também não pode contar com a clientela para os recomendar a outros potenciais clientes... O humor negro pontua a carga dramática como forma de aligeirar o ambiente. Uma atmosfera onde ninguém se consegue sentir confortável e dentro da qual se vai construindo um convite a cada um para fazer parte da estrutura dramática. Tema tabu, a eutanásia, tal como a morte, é ainda hoje um tema incómodo, um impecilho que se varre para debaixo do tapete no discurso da sociedade. Todos sabemos que existe, todos sabemos que a nossa existência acabará um dia, mas isso não é assunto para conversar. E dentro desse desconforto escondemos desejos que ainda menos revelamos. Há um momento em que o Eutanasiador se vira para os interrogadores e lhes pergunta: 

 - Se calhar até têm alguma inveja do meu trabalho. Quantas vezes não desejaram matar este ou aquele e, simplesmente, não tiveram coragem de o fazer...ou admitir? 

Nesta altura não é só o interrogador que é interpelado, mas cada um de nós.  

Por fim o Eutanasiador deixa-se capturar. Não por falha própria mas para dessa forma poder dar testemunho da sua actividade, do seu profissionalismo, para que o mundo conheça o seu nome e a eficácia do seu desempenho. Por isso vai deixando pistas, desleixa-se. Aqui não sabemos se o motivo para pôr um fim na sua carreira se deverá apenas a uma necessidade de divulgação do seu trabalho, a uma exigência de gratificação do ego, ou se também o seu fim se aproxima (há um espasmo durante o interrogatório indicador de algum problema de saúde). Não sabemos. O texto não nos dá direcções, não debate conceitos nem estados de consciência. Aquilo que faz, e de uma forma brilhante é confrontar-nos, interrogar-nos, pôr-nos a pensar. E é nesta inquietude estimulante que reside grande parte do êxito desta obra. 

Autora premiada, jurista de formação e formadora na área do envelhecimento e do direito das pessoas idosas e com demência, Paula Guimarães alcança aqui mais um patamar de qualidade e enriquecimento do património cultural no seu já longo trajecto criativo. A encenação de Diogo Infante é perfeita, envolvente e ao mesmo tempo estimulante do princípio até ao fim. Por fim a interpretação do actor Sérgio Praia revela sobriedade, realismo e um posicionamento que rapidamente transforma o seu texto num diálogo com uma plateia de caras conhecidas, amigos de longa data habituados a longas conversas. 

Tudo isto somado, estamos perante um grande momento de teatro, uma proposta desafiante fora da caixa, em suma, num belo momento de criação cultural. 

 

Artur Guilherme Carvalho 

 



 


Sem comentários: