“A Sabedoria edificou a sua casa,
lavrou as suas sete colunas.”
Livro dos Provérbios, IX.I
Para perceber é preciso tempo,
diria alguém mais velho ou mais sábio a alguém menos entendido. Ou talvez não.
Talvez aqueles quem têm alguma coisa a dizer, algum conselho a dar não sejam
exactamente homens sábios. Talvez sejam simplesmente “sabedores” em vez de sábios,
tipos que relatam partes do caminho a quem chega lá de trás e ainda não o
conhece no local em que se encontra.
(ganda seca, até faz lembrar a entrada daquela
famosa série “Lin Chung O Justiceiro” do final dos anos 70, onde cenas
colossais de pancadaria eram interrompidas por citações de Confúcio ou de um
outro sábio qualquer para grande azar do espectador adolescente que queria era
ver acção, isto é, tareia da boa)
Talvez essa espécie de pessoas
(os sábios) sejam tipos de uma fibra diferente que faz passar a sua mensagem de
todas as maneiras menos através da palestra, do conselho, da aula. Talvez sejam
tipos capazes de com um breve apontamento, uma história, uma alegoria,
conseguir fazer passar um tratado de conceitos, filosofias, aspectos
existenciais que o receptor consegue apreender com rapidez e evoluír mais um
bocado no seu trajecto.
(Por acaso, nos tempos que correm
não faço a mínima ideia do que será bom senso, lógica determinativa, evolução,
desenvolvimento no que à nossa espécie diz respeito. Para onde vamos, o que é
que andamos aqui a fazer, quem é que apagou a luz, como é que tudo é desprovido
de sentido são as questões que mais me assaltam quando me lembro do sítio onde
estou).
Devo ter conhecido dois ou três
sábios ao longo da minha vida. Um deles, o padre Viana, era um jesuíta que passou
três anos na paróquia da área onde eu morava em miúdo. De manhã levantava-se e
empurrava a estante dos livros até à janela aberta porque entendia que eles
precisavam de apanhar ar. Ao fim da tarde voltava a empurá-los de volta ao
sítio original. Era o recordista das confissões (actividade que detestava). As
velhas de sempre mal tinham tempo de se ajoelhar já eram bombardeadas com a
penitência e a absolvição e toca a andar que ele tinha mais que fazer. Era um
erudito, dava aulas de Teologia na Universidade e o seu mundo era o estudo, o conhecimento
e a espiritualidade. Não julgava, não criticava nem impunha. Limitava-se a
responder acerca daquilo que lhe perguntavam, a executar a sua tarefa
profissional de forma institucional sem se deixar envolver. Eu, como outros do
bairro, rapidamente nos rendíamos aquela figura peculiar de padre do
conhecimento, muito mais empenhado em explicar os mistérios do universo do
pensamento do que em impor condutas, julgar comportamentos, elencar o caderno
dos castigos para aqueles que se portavam mal. Às vezes era visto à noite em
passada larga à volta da igreja a apanhar ar antes de ir dormir. Um autêntico
comboio a deitar fumo do seu cachimbo ao qual nos juntávamos por vezes. Nessas
voltas eternas em torno da igreja falava-se de tudo e de nada. Nenhum tema era
incómodo para ele. Temas da actualidade social e política, temas de outras
religiões, espiritismo, fenómenos estranhos, Filosofia, História, etc. De vez em quando uma pausa para contemplar a
margem Sul do Tejo e o Seminário de Almada onde tinha feito os seus estudos
antes de ingressar na Ordem. Recordava as tardes de jogatinas de futebol ao fim
de semana e da alegria que isso lhe dava. A vontade de rir a correr com mais
vinte alunos de batina até aos pés e sapatos de trabalho, dado que era proibido
o uso de calções ou camisolas adequadas à prática desportiva. Graças ao padre
Viana fiquei a saber os clássicos gregos com uma ótima nota a Filosofia no fim
do secundário. Em marcha rápida às voltas e voltas ao redor da igreja ia-se visitando
a Escola de Atenas como quem vai a casa da família de um amigo. Sócrates,
Platão, Aristóteles, eram-nos apresentados de uma forma desassombrada, as
razões de ser da forma como pensavam, o tempo em que viviam, etc, etc.
Em poucas sessões nocturnas
acabámos por nos tornar amigos. De tal maneira que, uma vez por outra, combinávamos
um jantar. Havia no entanto duas épocas específicas em que não se podia contar
com ele. Em Outubro e em Junho o padre Viana fazia o seu retiro nos arredores
de Lisboa. Durante uma semana numa cela fria e húmida de um convento abandonado
praticava o jejum e a meditação a kilómetros de distância da povoação mais
próxima. Ora acontece que esse convento era conhecido por estar associado a
acontecimentos bizarros que ocorriam na sua proximidade. Em grupos de amigos
havia sempre alguém que tinha uma história para contar, normalmente assustadora.
Ou de corujas que se atravessavam na estrada e desapareciam, gritos de vozes ao
longe, até mesmo a falha mecânica temporária de um carro que deixou de
trabalhar de um momento para o outro. Quando soubemos do paradeiro dos retiros
do padre Viana, o Rodrigo que era mais velho e que já tinha lido mais alguns
livros do que o resto da malta lançou-lhe o desafio num jantar.
- Não tem medo de estar sozinho
num local daqueles de que se contam histórias terríveis e assustadoras ? – ao que
ele respondia descontraído
- Oh meu amigo, eu sou padre.
Acredito em Deus. É na graça dele que me entrego. Se tivesse dúvidas ou medo de
alguma coisa tinha que escolher outra profissão.
E ficávamos por ali sem mais
esclarecimentos. Havia água num regato que por lá passava que lhe mataria a
sede. De resto só levava um missal, um terço e um saco-cama. O resto era
meditação e oração. Purificação para uma nova época. Mito urbano ou espaço
assombrado o certo é que até eu me aventurei (de dia) por aquelas bandas com
mais dois “valentões” numa tarde primaveril. Por sugestão ou puro cagaço, o
certo é que não nos aproximámos mais do que uns cinquenta metros do local.
Voltámos para trás com a ideia reforçada da coragem e singularidade daquele
homem de meia-idade que nunca contava tudo o que sabia.
Numa noite de festa de fim de ano
lectivo e santos populares voltámos a jantar todos juntos. Talvez devido ao
calor toda a gente bebeu mais um pouco do que devia. Após a breve troca de
informações (as notas finais e os desejos de continuidade escolar), já depois
das sobremesas o padre Viana anunciou que depois do Verão seria colocado numa
nova paróquia ainda por determinar. Nós seríamos sempre bem-vindos se o
quiséssemos visitar. Na semana seguinte faria mais um dos seus retiros. Ficámos
calados a digerir o jantar e a informação. Olhámos uns para os outros como quem
interroga quem é que vai fazer a pergunta. O Rodrigo voltou a avançar. Contou a
nossa breve aventura de cagarolas e de como não nos conseguimos aproximar do
convento em ruínas. E disse qualquer coisa como nunca o iríamos esquecer, nem a
sua amizade nem a sua coragem de asceta em permanecer sozinho num lugar
daqueles. O padre Viana sorriu, mandou vir uma bagaceira e acendeu o cachimbo.
Depois olhou em redor.
- Já que para o ano não vou estar
cá quero-vos deixar uma lembrança antes de partir. Aquele lugar de que vocês
tanto falam em ignorância e medo foi em tempos habitado por um grupo de monges
que fazia voto de silêncio. Viviam do que produziam numa horta e dedicavam o
seu tempo à meditação e oração. Durante as invasões francesas houve um
esquadrão de cavalaria inimigo que passou por ali. Quando deram com o convento
roubaram os mantimentos, pilharam as poucas relíquias que lá existiam, incendiaram
o edifício e massacraram todas aquelas duas dezenas de almas que lá viviam. Desde
esse trágico dia nunca mais ninguém lá viveu. Ficaram as paredes e o regato
como únicos testemunhos do que uma vez terá sido um espaço habitado por alguém.
E agora digam-me vocês..? Que espécie de
vibrações é que poderia ter um lugar onde tudo isto aconteceu?
Artur