Janta-se em silêncio na cervejaria do bairro a contar as
luzes lá fora através do aquário das sapateiras em estado de semivida, às
voltas no mesmo sítio. Rostos de sempre e outros que não conheço distribuem-se
ao longo do balcão, olham com ar científico para o telemóvel enquanto esperam
pela imperial e, por cima das nossas cabeças a eterna televisão a debitar
imagens de guerra, de vidas destruídas, manobras diplomáticas, tácticas de
progressão no terreno. A bola ficou guardada por instantes no armário do Inconsciente
Colectivo, à espera de melhores dias. A
guerra é como aquelas visitas indesejadas que se sentam à nossa mesa sem ninguém
as convidar e em três tempos estão a dirigir os temas da conversa, não deixam
ninguém falar e fazem cair uma tremenda azia sobre o nosso apetite. Às vezes
como no balcão, outras apanho esta mesa que fica mesmo em cima da janela ampla
para a rua onde posso comer em silêncio a olhar lá para fora. Na cervejaria
onde sempre vim, logo a seguir à esquina, primeiro pela mão do meu pai antes
dele partir para Angola, lembro-me perfeitamente de um jantar em silêncio horas
antes dele embarcar. Não podia haver choraminguices dado que se estava num
local público. E como também não havia razões para comemorar, comia-se calado a
olhar lá para fora poucos anos antes de chegar o aquário dos crustáceos. Os
carros eram diferentes, as pessoas vestiam-se de outra maneira, mas a televisão
encavalitada num canto do tecto debitava imagens de África, helicópteros,
paradas militares, mensagens de boas festas dos soldados em Dezembro, um
almirante muito velho a distribuir medalhas em Junho. As imperiais, os bitoques
e o senhor Amadeu agarrado à alavanca da cerveja e a rosnar pelo canto do olho
Puta da guerra
Porque um filho dele lá, depois outro, felizmente voltaram
vivos. O meu pai também, mas o Luis que namorava a minha tia, não voltou.
Casavam daí a meses, a minha tia andou anos a carregar uma depressão. Depois
tudo acabou e voltou a bola, os títulos, os lances que não eram penalty, tudo
aos berros em nome de clubes e cores. Depois as cores passaram a partidos
políticos, havia noite de festa nas eleições, cada um debitava a sua posta enquanto
a televisão debitava concelhos, distritos, percentagens, números de deputados. E
com os partidos políticos veio também um aquário enorme que o sr. Amadeu
colocou mesmo em frente à vitrine com o intuito de chamar a clientela. Uma
inovação que só as hábeis e diligentes mãos do Aurélio conseguiam manipular.
Desde o ritual da manga arregaçada até à luva de borracha as primeiras
operações anfíbias eram espectáculo garantido com todos os presentes a suspirar
por uma dentada de uma tenaz à qual o Aurélio se esquivava com mestria.
Eh, homem! Parece que nasceste para isto… - diziam no fim
para disfarçar a inveja
Anos mais tarde o meu
primeiro filho a fazer o voo de adaptação na cervejaria, os pés a balouçar sem
chegar ao chão, o aquário com as sapateiras a andar às voltas para cima e para
baixo, a empurrar-se para chegar a lugar nenhum e logo a seguir a rua e as
pessoas, os prédios e os automóveis. Lá em cima na televisão a guerra no Iraque,
a invasão do Koweit, o deserto, as variantes diplomáticas e nós em silêncio
para não acordar os demónios mais negros que povoam o planeta, a tentar passar
nos intervalos da chuva a ver se eles não nos viam. Eu, um pai maçarico não me
queria despedir de um filho tão pequeno e mergulhar num remoinho de infernos se
esses infernos se alargassem até ali à cervejaria. Por isso comíamos em silêncio.
Uns anos mais tarde mais um filho e desta vez a antiga Jugoslávia a desfazer-se
aos pedaços, em ódio de uns contra os outros, genocídios, atiradores furtivos a
disparar sem nexo sobre a população indefesa, movimentações diplomáticas,
cidades destruídas. As sapateiras no aquário a treparem em susto umas para cima
das outras a tentar fugir das mãos certeiras do Aurélio, o senhor Amadeu a secar
um copo com o pano de muitas voltas e a rosnar por cima do olho
Puta da guerra
Enquanto as imperiais para lá e para cá, enquanto os
bitoques, as moelas a chiar na frigideira, enquanto as sapateiras a saltar do
aquário sem perceber bem o que lhes ia acontecer, cheias de medo, de frio,
cheias de alho, de barriga para o ar e tenazes imóveis.
Depois foi o Iraque outra vez, e a Síria, e o Afeganistão, e
o Líbano e em toda a parte e em parte nenhuma, a televisão sempre por cima das
nossas cabeças, as imagens da selvajaria e da destruição, mortos, vidas viradas
do avesso para sempre, cidades destruídas e sempre o silêncio ao ver aquilo
tudo. Tudo caladinho a ver se os demónios da guerra não se lembram deste lugar
Os bitoques e as imperiais, as canecas e as moelas a chiar
na frigideira, as pessoas, o aquário com as sapateiras lá dentro, uma e outra
vez, um e outro ano sem parar.
E nós todos, uma geração depois da outra, enfiados num
enorme aquário chamado cervejaria a correr para lá e para cá sem sair do lugar,
encavalitados uns nos outros a tentar escapar à diligente mão do funcionário da
morte para não sermos capturados e enviados para um poço negro de onde nunca
mais se regressa.
Artur
1 comentário:
RELATO DE VIDA... FANTÁSTICO TEXTO!
UM GRANDE ABRAÇO ARTUR !
XICO ALLEN
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