terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Vislumbres de um Sol d’Inverno

Saiu na revista TriploV um conjunto de narrativas curtas de minha autoria intitulada «Vislumbres de um Sol d’Inverno». Fica aqui o primeiro conto dessa colectânea:

 

O Poço

 

 

Aqui estou, olhando mais uma vez para o intenso negrume deste poço sem fundo. Fascina-me. Venho aqui muitas vezes para contemplar essa escuridão total que parece subir e contaminar o próprio ar, atraindo a luz, engolindo-a inteira, roubando a sua hialina claridade. Atiro pedrinhas só para as ver desaparecerem para nunca mais, pois nunca as ouvi embater no solo e tenho para mim que este poço não termina nunca. Entendamos-nos, houve um tempo, em que eu, imbuído de uma certa ingenuidade científica, tentei determinar com rigor qual a exacta profundidade deste abismo e todos os resultados que obtive foram inconclusivos. Primeiro, usei de meios rudimentares mas eficientes — um peso atado a um fio — mas não logrei encontrar meada suficientemente longa ainda que, juntando vários segmentos extensíssimos, tivesse obtido uma sonda com vários quilómetros. Depois, adquiri meios muito mais sofisticados que julgava eficazes, porém também eles se mostraram inúteis: ultra-sons e doppler, até um medidor laser que, em teoria pode determinar a distância da Terra à Lua, mas não a profundidade deste poço. Por fim desisti. Para quê este afã de obter uma certeza métrica quando o poço aí está, numa serena e quase imperturbável quietude. Ouviram bem, há, por vezes, movimento nessa escuridão de lonjura na forma de uns reflexos prateados que parecem ser escamas e um som de asas possantes e lentas, fazendo-me especular se o poço não é habitado e que essas criaturas enigmáticas têm tanta curiosidade para saber o que está cá fora como eu de conhecer quem nele vive. Se fosse mais novo e mais ágil e mais afoito talvez ainda pensasse em tentar uma expedição descendente, munido de escafandro, oxigénio e uma grua. Assim, resignei-me a vir para aqui contemplá-lo, pensar na vida e, de vez em quando, atirar as tais pedrinhas mudas para esta imensidão. No entanto, o poço chama-me, conheci-o toda a minha vida — pois descobri-o quando criança — e desde o primeiro momento tem exercido a sua sedução misteriosa, uma vertigem de abismo, promessa de emoção derradeira antes do fim, se fim houver, se chão tiver, se o fundo se puder alcançar e como, cada vez, com o passar dos anos, tenha menos a perder, sinto nos ossos e na víscera que breve chegará o momento do salto, do mergulho terminal nessa vastidão vertical e saberei, talvez, o que esconde, até onde vai ou, porventura, morrerei, de velho, em plena queda.

 

 

Leiam o conjunto completo em: https://triplov.com/vislumbres-de-um-sol-dinverno/

 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Teogonia Dois: 2. Um Deus Cansado

Tinha toda a eternidade, mas impacientava-se. Como? Um deus impaciente? Talvez por capricho, impulsividade e poder que ele o contrário à sua vontade nunca foi de admitir mas, mais do que isso, mesmo no que criasse era imperfeito. A modelação do barro genésico requer calma, a exacta e reflectida ponderação. Não basta dizer «faça-se» que a coisa fica feita. Quero dizer, feita ainda pode ficar, não será, contudo, coisa de que se orgulhe depois.

Era, pois, um deus imperfeito. Mas, não se iludam, era naquele panteão magnífico, um dos mais fortes e poderosos, temido pelos homens, e pelos outros deuses. Capaz de vergar a Natureza ao seu capricho, desafiava Fortuna e destino, impondo o que quisesse até mesmo às Parcas. Coitadas, cortavam o fio do que será quando ele mandava e não quando devia ser. E ele queria-o muitas vezes porque era, já o sabeis, impaciente como ninguém.

Mas era a descomunal potência genésica o seu principal atributo.

Criava animais exóticos e inverosímeis cuja função era desconhecida até mesmo para eles que, depois de experimentarem o que era viver, logo se deixavam morrer, após a angústia da perplexidade e sem deixar descendência. Eram rudes esses bichos. Não houvera tempo para detalhes na tamanha impaciência do deus e a bestialidade das criaturas , magníficas de pujança, além de suicidárias, tornava-as cruéis. Ainda bem que duravam pouco. De outro modo, seriam  o terror dos homens e dos outros animais que assistiam, incrédulos, àquela proliferação de monstros.

Em contrapartida, quando saiam plantas das suas mãos criadoras, elas espalhavam-se por todo o lado de modo incontrolável, ameaçando sufocar, na sua exuberância, todo o mundo. Porém, mais uma vez, porque eram imperfeitamente formadas, logo feneciam às primeiras chuvas ou, então, era esta nossa divindade que se irritava e as apagava da face da terra enviando um grande cataclismo que não poupava ninguém.

O pior era que tais fracassos, ferindo-lhe o orgulho, o tornavam ainda mais impulsivo e impaciente, ao ponto de uma exasperação endemoninhada o dominar. E assim lhe crescia uma fúria, tão descontrolada que nenhuma hecatombe ou vingança, castigo ou generosidade lhe podiam aplacar o ódio.

 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Diário Laboratório 2021: 15 /1/2021

 Há, porém, outras fontes de bloqueio para o texto longo (sobretudo na ficção narrativa):

1. O facto dos escritos-de-base estarem «perdidos» ou muito fragmentados, etc.

2. Existirem várias versões concorrentes, a ponto de o projecto se tornar incoerente.

3. Receio de falta de verosimilhança narrativa.

4. Tédio de trabalhar muito tempo no mesmo projecto.

5. Convicção na falta de originalidade da ideia-de-base.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A PREPARAR O ROLO PARA CONTINUAR A PINTAR.

 Oitavo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e um.

Sei que não é efeito da dose de reforço mas efeito da vida a acontecer. Há partidas inevitáveis e chegadas também. Há um todo que não se controla e outro tanto que se pode controlar. E há a falsa sensação de controle que existe como um placebo que cuida de todos os anseios e disfarça todas as incapacidades. Cheguei a casa a correr para me agarrar a um paracetamol só porque quero terminar o que já comecei antes que comecem os calafrios que nem sei se vão acontecer. A gata do meio brincava com o que me parecia um rato e não a contrariei até perceber que voa. Por isso relembro-me do dia em que encontrei um pintarroxo no meio do caminho agrícola das courelas. Estava aflito duma asa e não conseguia recuperar o voo. Parei o carro, saí e peguei nele. Nem tentou fugir e pu-lo no meu colo de encontro ao peito e à pele, no lugar onde as mães confortam os filhos. No dia seguinte já estava recuperado mas mal protegido da gatinha lambona. Fiz-lhe uma pira e encomendei-lhe o espírito esvoaçante ao deus dos pássaros e a São Francisco. Nesse dia voltei atrás, a todos os pássaros que se cruzaram comigo ao longo da vida até chegar ao primeiro, aquele que escondi dentro da gaveta da minha cómoda para poder cuidar dele. Quando começou a piar a minha mãe deu por ele. Fizemos uma papa de farelos e demos-lhe água. Ela disse-me pela primeira vez que, se interferimos com a natureza ao ponto de salvar um animal,temos que ser responsáveis por ele até estar em condições de voltar a ela. Corri para a gata do meio, a Gaya, e tirei-lhe o pardal moribundo da boca. Chorei até encharcar-lhe as penas mas não o larguei até ao último pulsar do peito pequeno que estava de encontro ao Monte de Vénus da minha mão esquerda. Fiz o que todos queremos para o nosso último suspiro que é o conforto duma mão amada. Nestes tempos em que se banalizou a morte em tempo recorde, que se legislou a ausência de toque, que se obrigou a existência asséptica da convivência dos corpos, resta a empatia como exercício de sobrevivência do espírito que se quer límpido. E resta muito se soubermos dar músculo à memória mais antiga da nossa existência. Relembro-me, novamente, dos últimos pedidos de minha mãe. Desses pedidos ressalvo o mais importante. Ela repetiu-o ao longo da minha criação, durante 38 anos, que foi a idade com que me teve e a idade que eu tinha quando ela se foi. Sabia que eu era uma “cabeca no ar” e reforçou a ideia até que, quando chegou o momento, eu não me esqueci de lhe pedir a extrema unção. Vi a agitação e a calma, o antes e o depois. Pergunto-me se, nestes tempos de máscaras e álcool , plásticos e painéis,isolamentos e muito medo, essa unção tão  necessária estará a ser feita. Onde fica a espiritualidade e a benção de existir no meio desta loucura pandémica? Onde fica o toque, a pele, o calor do peito dum ente amado, o conforto duma mão apertada sem luva nem desinfetante? 

Não sei se é efeito do reforço, da terceira dose, ou da minha condição de quase eremita, ou dum pequeno pássaro que tive a honra de untar a fronte com as lágrimas da minha incapacidade.

Elsa Bettencourt

Diário Laboratório 2021: 14/1/2021

 O bloqueio fundo do tormento do fragmento provém do terror ínsito ao infinito da possibilidade.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Teogonia Dois: 1. Um Deus Impaciente

 Tinha toda a eternidade, mas impacientava-se. Como? Um deus impaciente? Talvez por capricho, impulsividade e poder que ele o contrário à sua vontade nunca foi de admitir mas, mais do que isso, mesmo no que criasse era imperfeito. A modelação do barro genésico requer calma, a exacta e reflectida ponderação. Não basta dizer «faça-se» que a coisa fica feita. Quero dizer, feita ainda pode ficar, não será, contudo, coisa de que se orgulhe depois.

Era, pois, um deus imperfeito. Mas, não se iludam, era naquele panteão magnífico, um dos mais fortes e poderosos, temido pelos homens, e pelos outros deuses. Capaz de vergar a Natureza ao seu capricho, desafiava Fortuna e destino, impondo o que quisesse até mesmo às Parcas. Coitadas, cortavam o fio do que será quando ele mandava e não quando devia ser. E ele queria-o muitas vezes porque era, já o sabeis, impaciente como ninguém.

Mas era a descomunal potência genésica o seu principal atributo.

Criava animais exóticos e inverosímeis cuja função era desconhecida até mesmo para eles que, depois de experimentarem o que era viver, logo se deixavam morrer, após a angústia da perplexidade e sem deixar descendência. Eram rudes esses bichos. Não houvera tempo para detalhes na tamanha impaciência do deus e a bestialidade das criaturas, magníficas de pujança, além de suicidárias, tornava-as cruéis. Ainda bem que duravam pouco. De outro modo, seriam  o terror dos homens e dos outros animais que assistiam, incrédulos, àquela proliferação de monstros.

Em contrapartida, quando saiam plantas das suas mãos criadoras, elas espalhavam-se por todo o lado de modo incontrolável, ameaçando sufocar, na sua exuberância, todo o mundo. Porém, mais uma vez, porque eram imperfeitamente formadas, logo feneciam às primeiras chuvas ou, então, era esta nossa divindade que se irritava e as apagava da face da terra enviando um grande cataclismo que não poupava ninguém.

O pior era que tais fracassos, ferindo-lhe o orgulho, o tornavam ainda mais impulsivo e impaciente, ao ponto de uma exasperação endemoninhada o dominar. E assim lhe crescia uma fúria, tão descontrolada que nenhuma hecatombe ou vingança, castigo ou generosidade lhe podiam aplacar o ódio.

 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Diário Laboratório 2021: 13/1/2021

Pensai no pluri-vário da vida. É tal, indefinidamente, extenso. E o que é indefinidamente extenso assemelha-se ao infinito. Por isso, a literatura é fonte manante, inesgotável de possibilidade. Porque há inúmeros modos de contar inúmeras histórias, reais, irreais ou com mistura.