quinta-feira, 17 de setembro de 2020

ENCENAÇÕES E VIAGENS

 



 

 

 

E devagarinho, um a um, com ou maior ou menor alarido, vamos saíndo de cena. Como numa peça de teatro em que o autor nos vai retirando, esgotada a nossa participação. O autocarro encosta discreto na paragem a duas esquinas da nossa rua e deixa a porta entreaberta com vista para uma lista de nomes que se pode ver de fora. Para uns será um mergulho no vazio, um corolário lógico da viagem inerente a tudo o que o que mexe ou respira, para outros o campo de férias vai encerrar e vamos voltar para casa. O que assusta por um lado e entristece, contrasta com uma péssima estadia da qual nos queremos esquecer no abraço dos nossos pais. Na porta da rua a ceifeira mor aponta-nos o indicador esquelético e encolhe-o na sua direcção. Não a chamar mas a atribuir a vez. No cais de embarque o barqueiro grego interroga-nos acerca da moeda para a viagem. E tanto que deixamos para trás…tanto que ficou por fazer…os sonhos, os amores, as raivas. E se lamentamos alguma coisa não é o espaço vivido nem o currículo construído nem o caminho que percorremos. Lamentamos os outros que andaram connosco, que dividiram o caminho, o peso das mochilas nas caminhadas, os que no dormitório nos disseram para não nos preocuparmos. As coisas acabariam por se resolver de uma forma ou de outra sem razão para medo ou lágrimas.

Para trás ficou o pântano dos idiotas dirigidos por loucos. Os idiotas que nunca se questionaram, que não reflectiram, que não se importaram, que não foram donos de um pensamento a que conseguissem chamar seu. Os idiotas que nada criando, nada produzindo foram meticulosamente construindo a sua aldeia de mediocridade que os protegia uns aos outros. Os idiotas que transportando consigo as potencialidades que fazem a diferença nada conseguiram fazer. Ou por preguiça ou por medo ou por todas as razões que os impediram de conseguir ser. Fomos nós numa maneira muito peculiar de nos sermos que desenhámos uma breve linha colorida pelo destino e pela contrariedade, uma linha que irá apagando com o passar do tempo e da memória. Fomos nós, acertando ou falhando em cheio que (talvez) conseguimos aprender alguma coisa, perceber alguma coisa, compreender. Conhecimentos adquiridos que nos chegaram fora de prazo e para os quais não conseguimos encontrar nenhuma utilidade.

Vamos saíndo sabendo que a peça vai continuar. E isso que importa? Importas tu meu irmão com quem dividi cigarros e gargalhadas, importas tu pai, mãe, tia que me acarinhaste e me ensinaste a dominar o medo, a viver com a frustração, a valorizar a auto-estima. Importam vocês as personagens da peça contínua, os que saíram antes e os que ainda ficam. Sim o mais importante de tudo isto são os actores. Sem eles não havia peça, sem eles não havia teatro. É o criador que precisa de nós e não o contrário. Tem que nos inventar para poder valorizar o seu trabalho. Não é a peça que interessa mas esta relação de dependência que nos transforma nele e ele se multiplica em nós.

Por isso vamos um a um, com mais ou menos alarido, regressar a casa, ao nosso quarto, as nossos livros, aos nossos pais e continuaremos regressando a nós próprios nessa imensa unidade que se multiplica e divide e se volta a unificar. Para quê? Paraguai…

 

Artur

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

PELA ESTRADA FORA


 

 

     pour que le soleil n'arrête pas de briller

     la lune se léve chaque nuit.

 

                Paris 1985

 

 

Hoje tropecei neste livro. Tirei-o da estante e folheei-o. Era um tempo de andar na estrada à procura de tudo e mais alguma coisa, depois da tropa, daqui até Londres. Tinha a mania de escrever nos livros (todos tínhamos essa mania) e esse exemplar do Kerouac, que me acompanhou todo esse ano em que estive fora, foi um dos mais escrevinhados. Encontrei esta frase escrita por ti : "para que o Sol não deixe de brilhar a Lua levanta-se todos os dias… Paris 1985". De repente voltei a ser Paris sem um tostão no bolso, as capelas e as capelinhas de qualquer roteiro turístico, a campa do Jim Morrison em Pére Lachaise, voltei a ser eu sozinho a olhar para o futuro, voltaste a ser tu e um cavalete no meio da rua a pintar caricaturas dos turistas…e um jantar quente pela primeira vez em muitos dias e a tua casa até voltar à estrada. De repente não tinha acontecido nada em trinta e tal anos e a vida vivida era um enorme vazio sem etapas nem referências que nos comeu a todos. Havia uma gata que dormia sempre perto da aparelhagem e uma janela com uma vista fabulosa sobre a cidade. Cheirava a tintas e a diluentes, a ovos mexidos e a torradas de manhã. Havia um sorriso meigo e moreno nas tuas palavras, no teu discurso despreocupado de quem se está a cagar para o mundo, para o futuro, para a vida e para a morte ao mesmo tempo. Eras livre como a camisa larga e transparente que te acariciava esvoaçante com as correntes de ar. Havia reproduções na parede, Van Gohg, Matisse, Miró. Ao jantar havia Camus, Hemingway, e Kafka…sempre Kafka. Trocámos ideias, trocámos autores, trocámos vontades, trocámos os corpos numa valsa lenta e ao mesmo tempo ofegante. Para mim a vida cabia toda naquelas águas furtadas com uma janela aberta sobre  a cidade. Enquanto acariciava outra vez aquele meu companheiro impresso de viagem saltava no tempo trinta anos e tudo era outra vez possível embora na altura nada quisesse, nada invejasse, nada me desse qualquer impulso de conquista. Era eu e a estrada e pouco mais. Três dias depois arrumei o saco e fui apanhar o metro  para a estação onde paravam os camiões que partiam em todas as direcções. Levei dois dias a chegar a Londres. A tua frase só a conheci já quase um mês depois ao folhear o livro pela enésima vez. Perguntar pela felicidade ao passado não faz sentido nenhum. A questão mais pertinente é a de saber se alguma vez existimos, quando a memória se vai perdendo, quando as pessoas vão morrendo, quando não formos mais do que memórias no coração de alguém, quando já não houver ninguém para nos recordar. Seremos outra vez o nada que éramos antes de nascer.

E no entanto a Lua levanta-se todas as noites para que o Sol nunca deixe de brilhar.

 

Artur

 

LITTLE AMERICA