sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Singin´the Pain




Where is the knowledge we've lost in information ?
Where is the wisdom we've lost in knowledge ?
Where is the life we've lost in living ?

T.S. Eliot



1. Barbárie

Como já sabemos desde "Palombella Rossa", as palavras contam, têm importância, significam; compreendê-lo - nem que seja à custa de uma lambada aplicada a tempo e horas - faz toda a diferença, já que determina o modo como nos relacionamos com o mundo e permite-nos enfrentar o mal insidioso que emana desse mesmo mundo ao qual não nos podemos recusar, o qual, de resto, não podemos recusar, a não ser que recuemos para o exílio interior, uma distopia em que sorrimos por fora, continuamos a dizer sim e fechamos a nossa consciência a todas as cedências. Gostava de me tornar cínico, mas ainda estou demasiado enredado na teia kantiana; ainda sou obrigado a formular juízos morais (em primeiro lugar sobre mim mesmo) e a procurar afanosamente (embora com pouco sucesso) realizar o célebre "imperativo categórico". Assim, e só para dar dois exemplos, formulo juízos morais sobre a tendência das empresas modernaças para chamarem "colaboradores" às pessoas que nelas trabalham, considerando que tal nomenclatura é sinónimo de todo um programa ideológico, No tempo dos meus pais, o vínculo com a entidade laboral era um factor identitário, construía uma subjectividade, reforçava a ideia do ser humano como força produtiva (mesmo que alienada) capaz de transformar a realidade, sujeito (e não objecto) da História. Ser um "trabalhador" era fazer parte de uma longa série de movimentos sociais cíclicos e ininterruptos que, bem ou mal, culminavam num devir que só poderia ser mais justo e equalitário Tão somente porque, queiram ou não queiram os empregadores dos "colaboradores", a Justiça existe (mesmo que no mundo não haja um único homem justo). Os "colaboradores" são descartáveis, os "trabalhadores" não o são.  Falava atrás num "programa ideológico" que, como todos os programas, precisa de uma linguagem e de um terminologia específica. O primeiro passo na construção do discurso foi dado.
Depois, formulo um juízo moral, sem me alongar muito, sobre o fenómeno observado por cientistas sociais e economistas políticos: a desvalorização do peso do trabalho na economia e na sociedade. Os "colaboradores" não têm voz; estão arredados do discurso e exilados da cidade. Só podem "colaborar".

2. Como numa tragédia

Numa entrevista dada em 1977, Günther Anders declarou que a condição humana contemporânea repousava sobre a falta de imaginação (Phantasie). Para Fredric Jameson essa crise de imaginação relaciona-se com o declínio da nossa historicidade, da nossa capacidade vivida de fazer activamente parte da história. Esse declínio de um pensamento crítico e histórico produz consequentemente a incapacidade de moldar as representações dos nossos modos de existência actuais. Os movimentos sociais e políticos "sofrem de um grande défice de conhecimentos históricos, não podendo conduzir-se estrategicamente". O espaço e a lógica espacial, ou seja a extensão do direito à propriedade privada, a colonização mas também as novas lógicas urbanas que transformam os centros das cidades em grandes espaços comerciais (e o que é o centro de Lisboa senão um grande centro comercial para turistas ?), são prioritárias em relação às questões do tempo e das temporalidades. Domina assim o princípio do crescimento económico e a extensão ilimitada do direito à propriedade privada que se opõe aos grandes males ainda identificados pelo que resta da burguesia intelectual e humanista: o atraso e a ignorância, únicas fontes reconhecidas do desfavorecimento e da desigualdade.
As palavras e os conceitos dominantes têm como função neutralizar o negativo ao traçarem os contornos de um "discurso fechado" (como dizia Herbert Marcuse). Desse modo, o horrendo pós-modernismo pode conceptualizar "espaços-liberdades" inseridos em locais que o não são (livres), atribuindo-lhes qualidades que não possuem; o hiper-espaço moderno traduz-se por novas arquitecturas que têm como características essenciais "a estranha impressão de ausência de interior e exterior; a desorientação e perda de orientação espacial [...]; a desordem de um meio ambiente em que as pessoas e as coisas não encontram mais o seu "lugar"» (Fredic Jameson O Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio).
Em 1933, Walter Benjamin diagnosticou a nova pobreza na qual o horrível desenvolvimento da técnica mergulhou a humanidade inteira: a pobreza em experiências. A terrível constatação de Benjamin é a de uma humanidade que não procura experiências novas mas aspira, pelo contrário, a libertar-se de toda a experiência, qualquer que ela seja.Fá-lo, não porque seja ignorante e inexperiente, mas porque está saturada de cultura -. de informação e desinformação - cuja função é fatigar-nos e  desgostar-nos e tudo isso num só golpe. Embora as frases anteriores estejam escritas no presente do indicativo, relembro que Benjamin escrevia em 1933. Por outro lado (ou pelo mesmo), Guy Debord analisou com extraordinária lucidez o modo como o conceito de desinformação se instalou progressivamente na sociedade do espectáculo e do comércio a fim de neutralizar qualquer crítica; o essencial da actividade intelectual dos "colaboradores" deve resumir-se à distinção entre boa a má informação, uma actividade quotidiana ininterrupta que engendra desencorajamento e fadiga.
A consolação contemporânea face à perda de sentido, ao fim da história e aos projectos de emancipação (e ler Jürgen Habermas seria muito útil para se perceber em que consistem esses projectos de emancipação), satura o espaço público de imagens que substituem aquelas que poderiam nascer das experiências, produzindo uma inteligência de silicone, privada de experiências concretas sobre as quais se fundar. As duas guerras mundiais do século XX seguidas pela Guerra Fria concluíram aquilo que Walter Benjamin esboçou a seguir à primeira dessas guerras mundiais: o grande trauma da destruição e a sua experiência causaram tanta resignação como resistência. A obsolescência generaliza-se: os produtos destinam-se a serem rapidamente inutilizados e substituídos, mas a obsolescência afecta também a memória (prontamente substituída pelos discos duros dos computadores), o trabalho manual (já largamente substituído por máquinas), a história (que se tornou uma história contínua do esquecimento, uma "sucessão sem observador" (Günther Anders A obsolescência do homem) e o sentido (quando a existência é tão suportável quando temos um trabalho execrável como quando não temos nenhum trabalho). Ah, e já me esquecia, os trabalhadores foram sendo substituídos pelos "colaboradores"...
Trump, Bolsonaro e os outros palhaços, incluindo os próceres nacionais Ventura, Figueiredo e o "nouvel" Chicão estão servidos. Que lhes faça bom proveito.


3.Coda

No século XVII, certos indivíduos pertencentes a classes dominantes ou às elites intelectuais começaram a perder peso na sociedade (muito por via da delegação do poder absoluto de Louis XIV nos seus muito adorados cardeais que acumularam o poder de príncipes da Igreja Católica com as sinecuras da intendência) e portanto a perder voz e direito ao discurso. Muitos tornaram-se jansenistas, substituindo a regularidade da missa pelo diálogo interior, permanente e íntimo com Deus, outros remeteram-se ao silêncio e ao tal exílio interior. Aí está um bom remédio para todos aqueles que se sentem estrangeiros no mundo de hoje e não sabem como dialogar com os poderes instituídos.


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