sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

ESQUISSE



A maintes égards, le Musée Imaginaire este pour nous la réssurection de l’Invisible”

André Malraux designou este texto como “Esquisse”, com uma modéstia que não foi exactamente um dos traços distintivos da sua personalidade. Publicou-o na NRF (Nouvelle Revue Française) em 1940, uma chancela da editora Gallimard onde pontificavam os “mandarins da Margem Esquerda”. A expressão é de Simone de Beauvoir – pessoa que sabia do que falava – e procurava designar os intelectuais mais influentes na sociedade francesa e, por extensão, no Mundo. Era essa a disposição das coisas na época. Se a modéstia a que aludimos não convém nem se adequa a essa personagem “maior que a vida” que foi André Malraux, muito menos a designação de “esquisse” – com tudo o que comporta de inacabado e imperfeito – convém a este texto que, no nosso entendimento, se insere de pleno direito naquela que foi uma das mais profundas, sistemáticas e consequentes reflexões estéticas do século XX, materializada no conceito de Museu Imaginário, ou a exploração da arte no tempo e no espaço, sem restrições e fazendo face ao seu mistério fundamental. A partir de alguns princípios fundamentais, Malraux concebeu essencialmente uma representação mental, apoiada numa relação estreita entre imaginação e memória que consagrou a transcendência da morte através da arte. Este pensamento excede os limites estritos da história da arte, fazendo literalmente explodir a noção de tempo face ao desenvolvimento das civilizações que produziram as obras de arte e excedendo igualmente a sua forma de expressão. Como Ministro da Cultura, Malraux pensou o Museu Imaginário como forma privilegiada de democratização do saber, ou seja como desígnio fundamental de um projecto ético e político que o insere numa longa tradição de grandes homens da cultura que pensaram exactamente o mesmo, sem que pudessem dispor do poder e dos recursos que estiveram ao alcance de Malraux.
Voltando ao texto sobre cinema que aqui nos ocupa, cabe agora perguntar  como se insere na massiva reflexão estética que Malraux produziu, de uma amplitude tal que ocupou a maior parte da sua actividade literária e também da sua acção como Ministro. Assinalamos em primeiro lugar o seu papel de precursor, relembrando sucintamente as etapas desse itinerário: 1940 “Esquisse d’une Psychologie du Cinéma” (reeditado em 1946); 1947 “Psychologie de l’Art: Le Musée Imaginaire”; 1948 “La Création Artistique”; 1948 “La Monnaie de L’Absolu”; 1951 “Les Voix du Silence” (versão revista e conjunta de “Psychologie de l’Art : Le Musée Imaginaire”, “La Création Artistique” e “La Monnaie de l’Absolu”; 1952 “Musée Imaginaire de la Sculpture Mondiale: La Statuaire”; 1954 Musée Imaginaire de la Sculpture Mondiale: Des Bas-Reliefs Aux Grottes Sacrées”; 1954 Musée Imaginaire de la Sculpture Mondiale: Le Monde Chrétien”; 1957 “La Métamorphose des Dieux : Le Surnaturel”; 1974 “La Métamorphose des Dieux : L’Irréel”; 1976 “La Métamorphose des Dieux : L’Intemporel”. A estas obras centrais na definição do conceito de Museu Imaginário, e no seu estabelecimento como projecto estético e pedagógico, juntam-se : 1947 “Dessins de Goya Au Musée du Prado” e 1950 ”Saturne, Le Destin, L’Art et Goya” [1].
Portanto, é pelo cinema que Malraux inicia o seu monumental empreendimento estético. Esta afirmação – verdadeira – terá que ser mediada por uma outra, de Denis Marion[2], segundo a qual a relação de Malraux com o cinema anterior à realização de “L’Espoir” foi somente a de um espectador, embora atento e clarividente. Interessavam-no sobretudo os expressionistas alemães e, mais tarde, os filmes soviéticos pelas suas qualidades plásticas e efeitos propagandísticos. O próprio Malraux coloca a génese do seu texto claramente no eixo da realização do filme, ao afirmar: “Mais ces réflexions nés de l’expérience que j’avais acquise en tournant les morceaux de “L’Espoir”…”. Podemos concluir que foi a realização do filme que o inspirou e elucidou, impelindo-o na direcção do extraordinário paradoxo que marca definitivamente um texto que termina com a frase: “Par ailleurs, le cinéma est une industrie”. Indústria ou arte ? Ou ambas ? O contrassenso inicial e a sensação de estranheza que este paradoxo provoca no leitor podem ser ultrapassados considerando um dos aspectos essenciais do pensamento de Malraux: a arte, o artístico não estão necessariamente contidos no objecto, da mesma maneira que Michel Foucault diria que o sentido não está contido nas coisas; o que importa é a “presença” (noção devedora do conceito de “aura” em Walter Benjamin) ou, num sentido mais amplo, a concepção metafísica de arte como conteúdo claramente hegeliano (a arte total). Desse modo, o cinema pode ser simultaneamente industrial e artístico, sem que uma e outra vertente se anulem e comprometam reciprocamente.  Resolvida essa contradição inicial, podemos e devemos adoptar a perspectiva de Malraux e abandonarmo-nos a essa assombrosa meditação que apresenta o cinema como sucessor directo e dilecto das artes pictóricas como a pintura e a escultura; às reflexões sobre a relação entre a fotografia e o cinema, importando aqui referir que Malraux considera que a passagem daquela a este não foi senão a passagem de uma “gesticulation imobile” a uma “gesticulation mobile” e que foi verdadeiramente a invenção da montagem, da “découpage” e de outras técnicas cinematográficas que salvaram o cinema de um destino que se anunciava menor ou irrelevante. Acima de tudo, Malraux conferia à montagem um papel decisivo na conquista do estatuto artístico do cinema. Ouçamo-lo: “…c’est donc de la division en plans, c’est-à-dire de l’indépendance de l’opérateur et du metteur en scène à l’egard de la scène même, que naquit la possibilite d’expression du cinéma – que le cinéma naquit en tant qu’art”.
Para além deste aspecto, o ensaio debruça-se ainda sobre os trabalhos dos realizadores soviéticos, com destaque para Sergei Eisenstein, personalidade com a qual Malraux sente especial empatia pessoal e artística; a importância do som (que Malraux vê como mais um meio poderoso de expressar as emoções no ecrã “Le cinéma sonore est au cinéma muet ce que la peinture est au dessin”), concluindo-se a obra com um capítulo dedicado ao cinema enquanto indústria, assumindo especial relevo a noção de “star system” emergente na época e a noção de mito : “Le cinéma s’adresse aux masses et les masses aiment le mythe, en bien et en mal”, escreve Malraux.
Nem historiador de arte, nem filósofo, nem mesmo psicólogo (apesar de este e de outros textos se intitularem “Psychologie”...), o legado de Malraux é inesgotável: cada época, cada indivíduo compõe e recompõe a sua própria família de obras, que nomeia como arte e como cinema e comunica através desse jogo de sinapses com o mundo (e com as outras eras). É o Museu Imaginário, próprio de cada um, alimentando-se de um fundo universal no qual cada homem encontra “sa part d’éternité”.
Resolvido assim o “affaire Malraux”, deixamos uma última nota: Em 2013, o historiador e filósofo Georges Didi-Huberman organizou no Museu do Louvre um ciclo de conferências dedicado à noção de Museu Imaginário concebida por André Malraux. O que significa que a sua longa e portentosa meditação ainda faz pensar sobre arte aqueles que realmente o tentam fazer.


Arnaldo Mesquita




[1] Para esta datação e seu encadeamento, seguimos a edição crítica em dois volumes sob a direcção de Henri Godard e Jean-Yves Tadié, respectivamente volumes IV e V das “Oeuvres Complètes” de Malraux na Bibliothèque de la Pléiade. Esses dois volumes, genericamente designados como “Écrits Sur Art”, agrupam todas estas obras. Para a análise textual de “Esquisse d’Une Psychologie du Cinéma”utilizamos a edição de 1946 disponível na Biblioteca da Cinemateca.
[2] MARION, Denis “André Malraux”, Paris, Seghers, 1970



Publicado na Página Digital da Cinemateca - Museu do Cinema, na rubrica "Textos e Imagens".





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