sábado, 6 de maio de 2017

ATÉ LOGO TIA



Tanto quanto sei, continuo à espera que venhas do trabalho ao fim da tarde encostado ao parapeito da varanda que é maior que eu, para irmos dar uma voltinha antes do jantar. Se estivermos no Verão sei que poderei contar com um gelado na pastelaria, se estivermos no início do mês até pode acontecer que me compres um carrinho de miniatura na papelaria. Sei que quando chegares, apesar de cansada ou desiludida com o namorado o teu rosto estará sempre desenhado com um sorriso e uma palavra amigável para me dar. Por isso quando a tarde começa a chegar ao fim corro para a varanda e encosto-me ao parapeito que é maior que eu a espreitar para o fim da rua à espera de te ver chegar. E conversaremos sobre tudo e nada como velhos amigos a caminho da pastelaria e depois a caminho do jardim enquanto saboreamos um gelado.
Tanto quanto sei não me lembro de ter conhecido alguém mais generoso do que tu, mesmo quando era malcriado ou proferia frases irresponsáveis que percebia logo a seguir que te deixavam triste. Triste como eu fiquei quando te foste embora começar uma nova vida noutras paragens, triste como quando me lembro de ti depois de partires outra vez. Da primeira vez cheguei a abrir as tuas gavetas e a meter a cabeça lá dentro para cheirar os restos da tua presença. Agora restam-me as lembranças de uma vida, a história de nós os dois que começa lá atrás, muito atrás quando usava calções e andava sempre esfolado nos joelhos. A vida continuou, a vida continua sempre. As pessoas que amamos nunca chegam verdadeiramente a morrer, arranjam um lugar na mesinha da sala no meio das fotografias dos outros que foram antes. É onde tu moras agora. Doce, meiga, tolerante e bonita como sempre foste. Com as barbatanas que te ajudavam a nadar na praia que eu depois herdei, com os melhores natais da minha vida em tua casa em Inglaterra com o meu tio e o meu primo. Com aquela tarde na baixa londrina em que um adolescente desastrado como eu só fez asneiras, só disse disparates perante o teu ar tranquilo e compreensivo. Consegui despejar uma Coca Cola por cima de mim e encher um cachorro quente com mostarda de Dijon que não conhecia até deitar fumo das orelhas, tropeçar numa velha “bifa” no metro que ia caindo ao chão. Ter treze anos é tão estúpido e tão solitário que se não houver ninguém que nos vigie pode-se rapidamente precipitar numa tragédia. Mas não foi assim porque estavas lá tu. Foste mais uma vez a garantia, a tolerância, o conselho amigável que me dizia: “não é grave se falhares…de vez em quando acontece…”; “ parece que é o fim do mundo mas amanhã o mundo continua…e tu também”. Queria dizer-te tanta coisa, agradecer-te, segurar outra vez as tuas mãos nas minhas, abraçar-te quase até ao sufoco. Para que saibas que não me esqueço de ti nem da longa caminhada que fizemos ao longo de uma vida inteira. Para que saibas que te agradeço profundamente a permanente disponibilidade, a delicada mão sempre estendida para uma festa, uma ajuda, a mão que tantas vezes me lavou o rabo. Não me esqueço, nunca o vou fazer. Não me esqueço que terminei o meu primeiro romance em tua casa num Verão acidentado, onde depois de muita maluqueira, muita confusão, muitos “anos 80” decidi apanhar o primeiro autocarro em Victoria Station e bater-te à porta. Lá estavas tu e o tio e o Chris e os dois gatos (o Snowy e o Smokey), lá estavam vocês todos em forma de família e porto de abrigo, albergue exclusivo, lá estavas tu e o teu sorriso. Não me esqueço. Fiquei a dormir no teu quarto para poder “trabalhar melhor”. Ganhei peso com o teu empadão, ganhei cor, voltei à vida. Não me esqueço. Como qualquer miúdo de calções e joelhos esfolados à espera da água oxigenada e do penso rápido encostado a um parapeito de uma varanda maior que eu.
Tanto quanto sei as pessoas têm que morrer, é o problema de se estar vivo. Mas as histórias, os caminhos que as pessoas fazem juntas, os natais, a porta sempre aberta, tudo isso fica vivo de forma permanente. Como aquela mesinha ao canto da sala onde caminhas para a água com as barbatanas debaixo do braço. Um dia sei que acabarei por ir parar lá. E quando isso acontecer vou correr atrás de ti de calções e joelhos esfolados para que passes a água oxigenada e coles o penso rápido. E, quem sabe, pode ser que depois consigamos ir à pastelaria comprar um gelado e passear até ao jardim. Eu sei que tu vais voltar a aparecer por trás da esquina. Muitos beijinhos tia Paula.



Artur

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