terça-feira, 8 de dezembro de 2015

OS PORTÕES DO AMANHECER



Se entendermos as existências como linhas de vida depressa nos apercebemos que é nos momentos em que elas se cruzam que acontece alguma coisa de importante. Algo que nos fica na memória e nos acrescenta na evolução. A partir desses nós ou cruzamentos tornamo-nos sempre noutra coisa, algo completamente diferente do que éramos antes. Se bem que nunca a tenha considerado como prioritária em relação a outras, o certo é que em momentos decisivos ou importantes da minha existência a banda Pink Floyd sempre se fez notar enquanto efeito sinalizador como mais nenhuma outra ao longo de mais de cinquenta anos. Foi para tentar perceber este mistério que decidi escrever esta série de textos. Comecemos pelo princípio.
Os anos 60 marcaram uma época determinante, um tempo de ruptura e revolução como há muito o mundo não tinha visto. Talvez o elemento mais evidente e mais aglutinador de toda essa mudança tenha sido a música. De facto, nunca como a partir dessa década a música teve um papel tão relevante para a Humanidade ao ponto de se tornar quase a nova religião mais popular. Nos anos 60 aconteceu também uma coisa curiosa. Nasci eu.
É claro que em 67 eu nem sequer ouvia musica, antes vestia um bibe e caminhava para o jardim de infância. Mas os Pink Floyd estavam também no início da sua caminhada. “The Piper At The Gates Of Dawn” nasce nesse ano sendo posteriormente considerado como um dos melhores álbuns de rock psicadélico de sempre. O título tem origem no livro “Wind Of The Willows” (1908) de Kenneth Grahame, mais concretamente no capítulo 7. Tratava-se de um versão pastoral para jovens de evocação à natureza no vale do Tamisa. Uma mistura de misticismo com aventura, camaradagem e moralidade.
Sendo o primeiro e o único trabalho liderado por Syd Barrett podemos ouvir letras povoadas por espantalhos, animais humanizados e gnomos ao longo de passagens instrumentais de rock psicadélico.
Um ano depois as ruas de Paris soltam-se em explosões de Maio, entro para a escola primária e os Pink lançam o seu segundo trabalho: “A Saucerful Of Secrets”. Enquanto eu começava a aprender a ler e a contar, a banda revelava as linhas gerais que marcariam os seus próximos trabalhos. Em múltiplos contextos. Em primeiro lugar a continuidade de um trabalho iniciado com “The Piper…”, povoado de pausas prolongadas e tiradas repetitivas. Mas ao contrário do álbum de estreia completamente dominado pela mão de Syd Barrett, “A Saucerful…” conta apenas com um tema da sua autoria. Uma personalidade transbordante de génio bem como o consumo de ácidos davam lugar a um comportamento cada vez mais alheado de tudo em geral. Barrett deambulava pelo palco, participava ocasionalmente. Outras vezes conseguia estar uma entrevista inteira sem dizer nada. Um dia Waters ia pela estrada fora a conduzir uma carrinha e a recolher os elementos da banda. Alguém perguntou se valia a pena ir buscar o Syd. Todos disseram que não. David Gilmour é escolhido para a substituição. “A Saucerful Of Secrets contará apenas com um tema de Barrett, “Jugland Blues”. Seria a única vez em que todos os elementos dos Pink Floyd trabalhariam no mesmo projecto. Nesse ano a Rolling Stone classificou o álbum de “muito pouco interessante, a roçar a mediocridade”, ressalvando a saída de Barrett como uma das razões principais. Mais tarde os críticos emendaram a mão e reconheceram mérito numa obra “ de ambiente imaginário, um conto de fadas, entre um estado consistente e vívido, e outro espacial e etéreo com longas passagens instrumentais a servir de pontes entre os dois estados”. Barrett afastava-se do projecto mas apenas em termos físicos. O seu espírito ou o seu fantasma no entanto, ficaria de pedra e cal a pairar para sempre sobre o caminho do “fluído cor-de-rosa”. Em 1969 os Pink Floyd fazem a sua primeira incursão no cinema ao assinar a banda sonora do filme “More” de Barbet Schroeder, uma dissertação acerca do consumo, dependência e vertigem da heroína. O álbum com o mesmo nome incide essencialmente num trabalho acústico de baladas folk. No mesmo ano segue-se “Ummagumma”, um misto de estúdio e gravação ao vivo onde se encontram mais aproximações experimentais à música popular como os blues e o folk. Mais tarde todos confessaram ter detestado ambos os álbuns. De volta ao cinema vêm a integrar a banda sonora de ZABRISKIE POINT de Michelangelo Antonioni, partindo daí para “Atom Heart Mother” (70). Apesar de anos mais tarde tanto Waters como Gilmour se lhe referirem como “algo que nasceu de uma boa ideia mas acabou por ser muito mal trabalhado”, o sucesso comercial foi bastante bom. Contando a história de uma  mulher a quem é implantado um pacemaker movido a energia nuclear, a parte mais interessante radica no facto de se recuperarem partes instrumentais de trabalhos anteriores para posterior desenvolvimento. A entrada do tema homónimo do álbum, ao utilizar um extenso registo de orquestra aproxima os Pink Floyd do conceito de Rock Sinfónico. Uma tendência que se continuará a manifestar em “Meddle” (71), mais concretamente na introdução da faixa “Echoes”.
Nos primeiros anos de existência, ao procurar a construção de uma forma, ou mais concretamente de uma identidade, a banda deixa ficar pelo caminho algumas das traves mestras que viriam a influenciar toda a sua obra posterior. O fantasma omnipresente de Barrett, um tempo de consumo e estudo dos efeitos dos ácidos enquanto agentes de expansão da consciência, a procura de outros mundos, outras realidades, enquanto razão directa dessa expansão, o diálogo permanente entre várias formas de expressão artística, o conceito ainda por definir da expressão “multimédia”.
De facto, tanto para mim como para a maioria das pessoas, os primeiros contactos com a realidade não nos oferecem nenhuma tranquilidade nem conforto. Com menos de dois anos deixei de viver com os meus pais e fui para casa de uma avó. Fiz a escola primária em pleno Estado Novo com um crucifixo na sala entre as fotografias do Presidente da República e o Presidente do Conselho. Cá em baixo as aulas eram pontuadas por sessões de reguadas e ponteiradas na cabeça. Tudo isto antes de ter dez anos. Através do rádio, quase sempre ligado em casa, encontrei na música um caminho de fuga e alternativa à realidade, projectando sempre que possível os limites da imaginação para as narrativas dos livros e mais tarde para os filmes na televisão. Era urgente inventar vários mundos para além deste.
Por outro lado, no final da década de 60 o Estruturalismo entrava na ordem do dia. Filósofos e cientistas chegavam à conclusão que o conhecimento se fazia e enriquecia através da dependência e do diálogo entre as várias dimensões desse mesmo conhecimento. As relações definiam os termos. Dando especial destaque à imagem (veja-se as obras de arte que são quase todas as capas dos álbuns), elaborando videoclips engenhosos e alucinados muito antes de serem moda (só nos anos 80 é que se dá a grande explosão deste auxiliar da música) e estando em contacto quase permanente com o cinema, os Pink Floyd desenvolviam e estimulavam o diálogo e a interdisciplinaridade das artes na senda da moda filosófica do seu tempo.
Os anos 70 estavam a começar e com eles um tempo dourado para a banda.


Artur

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