quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

PÉROLA NEGRA



"Indians scattered
on dawn's highway bleeding.
Ghosts crowd the young child's
fragile eggshell mind.
We have assembled inside
this ancient and insane theater
To propagate our lust for Life...

Oh great creator of being
grant us one more hour, 
To perform our art
and perfect our lives"

O DVD "The Doors", editado em 2001, contém um inestimável documento que, a diversos títulos, se revela essencial para a compreensão da extrema radicalidade de "Absolutely Live". Trata-se de um "clip" video que recria "The Ghost Song", uma música publicada pela primeira vez em 1978, no álbum "An American Prayer". Esse registo, lançado sete anos depois da morte de Jim Morrison, é composto de recitais da sua poesia, a que se acrescenta música tocada pelos outros elementos da banda e canções que não foram registados nos outros discos. Constitui, sob todas as perspectivas, uma magnífica homenagem póstuma de Manzarek, Krieger e Densmore ao poeta Morrison e não à estrela rock ou ao "Mickey Mouse de Sade", como alguém lhe chamou. O video que refiro resulta da recitação hipnótica de um dos poemas mais fulgurantes e profundos de Morrison, uma peça lírica que condensa as crenças filosóficas e metareligiosas do poeta, convocando literalmente os fantasmas de que a sua mente se alimentou ao longo da sua dolorosa e apocalíptica aprendizagem. A imagética presente é muito forte: sucedem-se metáforas alucinadas, visões herméticas, citações literárias e apelos lancinantes a uma mais profunda compreensão da vida e da morte. Os músicos tocam "por cima" dessas palavras exaltantes e enigmáticas e sucedem-se imagens fixas e em movimento de Morrison, das vastas paisagens desérticas do Arizona, de rituais mágicos dos índios norte-americanos, um feiticeiro comparece no espaço em que os músicos tocam, os espíritos totémicos saturam a atmosfera, recordações de antigas sabedorias transformam o poeta e os músicos em demiurgos, xamãs, intermediários, celebrantes de um ritual que tem por mote "the lust for life" e a fusão total entre a expressão artística e o impulso vital.

A pérola negra que veio a chamar-se "Absolutely Live" é um estranho objecto, lançado em 1970, resultando da compilação de excertos de diversas actuações ao vivo, em várias cidades dos Estados Unidos. No seu conjunto, revela menos o estilo ao vivo da banda do que um sentido de "montagem" (no sentido cinematográfico do termo), reunindo peças tão díspares como "Who Do You Love" de Bo Didley e "Alabama Song" de Kurt Weill, os temas mais antigos da banda e, sobretudo, as grandes peças de resistência: "When The Music's Over", "Celebration Of The Lizard" e "The End" : Morrison está no auge da sua capacidade interpretativa, mostrando um fulgurante poder de comunicação, de celebração e de comunhão com um público completamente rendido ao lirismo intenso da poesia e subjugado ao carisma radical do cantor e ao modo como a banda preenche os espaços vazios em volta do buraco negro constituído pela voz, o corpo, a expressão física e o "pathos" das palavras de Morrison. O grande admirador do filósofo alemão Friedrich Nietzsche prova em "Absolutely Live" que só a força se pode juntar à força e que é preciso o caos interior para gerar uma estrela dançante. E a "estrela dançante" revela-se aqui deambulando entre a metafísica de canções como "Universal Mind", a lírica profética de "When The Music 's Over", a encenação da personagem de um pregador em "Petition The Lord With Prayer" e a terrível, lancinante poesia narrativa de "The End". E revela-se, também, na inusitada capacidade de improviso da banda, também ela no auge da sua capacidade musical, metamorfoseando as canções e expandindo os seus limites para territórios até aí inexplorados de consciência e percepção.
Se, como atrás ficou dito, "Absolutely Live" não é exactamente um disco ao vivo - já que não resulta da gravação homogénea de um único concerto - resultando, isso sim, de uma "montagem" altamente criteriosa de momentos escolhidos de vários concertos, destinada antes de mais a compor um retrato multiforme das actuações ao vivo da banda,  o registo ilustra cabalmente o modo como Morrison assimilou e interpretou "A Origem da Tragédia", de Nietzsche, a dualidade entre apolíneo e dionísiaco e o modo como essa dualidade ultrapassa o antagonismo e se transmuta em palco numa catarse colectiva orgiástica, celebratória e xamanística.
Falta ainda referir uma outra dimensão, evanescente e seguramente a mais importante deste documento: a forma como Morrison, o poeta, à solta num palco com a sua banda, face à multidão de co-celebrantes embriagados de música e de palavras, excitado até aos limites do suportável pelo carisma e energia do cantor, confronta a sua própria mortalidade e com ela se concilia, ao mesmo tempo que convoca e apela às forças primordiais da vida.




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

UM POETA DO COSMOS

James Douglas Morrison será sempre recordado como um ícone incontornável da história do rock, um mártir prematuramente desaparecido às mãos dos hábitos de uma cultura autodestrutiva povoada de drogas, um visionário muito à frente do seu tempo, um homem com enormes dificuldades em compreender o mundo, em se conseguir compreender a si próprio. Estando correctas todas estas posições seria incompleta qualquer apreciação do vocalista dos Doors sem a análise da dimensão poética do seu trabalho. De facto, Jim Morrison, apesar de mais conhecido pela sua acção enquanto vocalista de uma das mais importantes bandas dos anos 60, inscreveu a maiúsculas o seu nome no quadro dos poetas, reforçando o seu estatuto efectivo nas páginas da “Linguagem Universal”. Morrison, para além da maior parte das letras das músicas dos Doors, é também autor de duas antologias poéticas ( An American Prayer” , 1970, e “The Lords and The New Creatures” , 1971). Basicamente, os seus poemas resultam da reflexão dos tempos em que vive, das tensões e contradições que o vão compondo. A cultura das drogas, o movimento pacifista, a arte de vanguarda são temas dominantes da lírica de Morrison. Estudante de artes performativas (Teatro e Cinema) na Universidade da Califórnia, é lá que conhece os elementos que integrarão a banda no futuro. A recordar : Ray Manzareck nos teclados, John Dushmore na bateria e Robbie Kriger na guitarra . O nome de batismo (Doors) é baseado num livro de Aldous Huxley “The Doors of Perception”, que por sua vez citava um poema de William Blake (“If the doors of perception were cleansed / All things would appear infinite”). A banda nunca teve um baixo. Influenciado pelo prévio movimento dos “beatnicks” dos anos 50, onde se ensaiou a fusão do jazz com a poesia, para Morrison a música serviu de rampa de lançamento para a projecção dos seus poemas, acrescentando-lhe uma roupagem teatral, uma coreografia. O seu comportamento exibicionista e “obsceno” nos palcos, as jam sessions de geração espontânea e o consumo indiscriminado de drogas, mais do que revelarem uma histeria ou um desequilíbrio mental, eram antes elementos dessa postura de imprevisibilidade e vanguardismo. Ou nas palavras do próprio:” Digamos que estava a testar os limites da realidade. Estava curioso para saber o que aconteceria. Foi isso, apenas…a curiosidade”. O seu primeiro alter-ego , The Lizzard King/ O Rei Lagarto, aparece pela primeira vez no célebre álbum “Waiting for the Sun” (68), num poema impresso no próprio disco. Tratava-se de “Celebration of The Lizzard King” cuja parte das letras é utilizada em “Not to Touch the Earth” e, por completo na gravação “Absolutely Live” (70). Após alguns incidentes e outro tanto com acusações por comportamentos impróprios, multas e tribunais, Morrison muda de rumo. Deixa crescer a barba e afasta-se do rebuliço da fama, dedicando a maior parte do seu tempo a vários projectos fora do contexto da banda. Obcecado e dominado pelos seus demónios interiores, Morrison escrevia compulsivamente, revelando também alguma dificuldade em explicar os seus objectivos. Sentia sem explicar, criava sem racionalizar. Até o seu fim prematuro se desenhava nos seus escritos: “ O Great Creator of beings, grant us one more hour To perform our art and perfect our lives” Em Abril de 1970 “Morrison Hotel” salta para o topo das tabelas em Inglaterra e nos Estados Unidos. No dia do seu 27º aniversário Morrison grava na Elektra LA Studios vários poemas seus que no futuro constituirão a base de “An American Prayer”. Os Doors fazem o seu último concerto em New Orleans que termina num total fracasso. Morrison parte o microfone, perde o controle e desmaia. Terminando as gravações de “L.A.Woman”, Morrison parte para Paris em busca da sua carreira literária. Nunca mais voltou. A poesia de Morrison inscreve-se num contexto de inconformidade, aventura, e multiplicidade dimensional na medida em que engrandecendo as possibilidades do “Ser”, aponta para um estado de liberdade total num espaço onde tudo é possível. Um espaço fora do espaço da consciência humana, das limitações artificiais embora permanentes que impedem a celebração total e absoluta quer dos sentidos quer da vibração de cada um. O comportamento violento é assumido apenas no contexto de uma dimensão violenta da existência dentro da qual o pacifismo não tem lugar. Os seres percorrem todos os caminhos na busca da sua libertação, saltando dimensões, animados pela força do Amor e da Solidariedade. São reflexos errantes de uma estrutura cósmica, imortais aprisionados ao medo de morrer. Apesar da sua curta estadia neste planeta, Jim Morrison acabou por conseguir o seu lugar na tradição da poesia popular norte americana, sendo hoje alvo de estudo e investigação nas universidades. A leitura da poesia de Morrison é essencialmente uma viagem. Sobrevoando as mais elementares emoções abre-se uma realidade onde tudo é infinitamente maior do que podíamos imaginar. Viajando para dentro e para fora de nós, descobrimos e coleccionamos os segredos do universo num percurso sem medo nem culpas. Jim Morrison…um poeta cósmico. Artur