A palavra "monstro" deriva do verbo latino "monstrare" e aplicava-se a todos aqueles que mostravam, exibiam as suas deformidades ou deficiências físicas, provocando a piedade, a comiseração e a compaixão da comunidade a que pertenciam. Não é assim o monstro na nossa triste contemporaneidade : o monstro moderno exibe-se perante o país numa pretensa "mensagem de Natal", que mais não é do que uma manobra da mais vil e abjecta propaganda, que se arrasta por infindável meia-hora de mau português, mentiras, fraudes, servidas por um discurso vazio, ôco, redondo e, repito, infindável. Não é por se apresentar bem penteadinho, com um fato de bom corte, a voz bem colocada e a serenidade estampada no rosto que o monstro deixa de o ser. Não exibe, antes esconde o aleijão moral de que enferma, a profunda ausência de ética e de pensamento que fica camuflada e soterrada sob essas toneladas de imbecilidades que pontuam o discurso. No fundo, qual é a mensagem (se é que há alguma ) ? Poderia resumi-la assim:
"É verdade que o preço que pagaram foi pesado e continuará a sê-lo. A vida que vos peço que levais parecerá inumana, calamitosa, indigna. Mas mudai um momento de perspectiva. Deixai esse ponto de vista estritamente pessoal, egoísta, piegas, limitado e considerai o do mundo mirabolante que vos prometo à chegada. Abandonai o vosso ponto de vista e aceitai o desta grande utopia que eu vos proponho e em nome da qual vos peço que aceitais o arbítrio, a devastação, as humilhações e as indignidades. Vereis então que tudo isso faz parte de um plano de conjunto. Compreendereis então que esta devastação, esta carnificina, talvez participem de uma ordem superior. Parecia-vos cruel, insensato ? Pois bem, não é ! Isso possuía um sentido, estava inscrito na ordem das coisas. Eu, que estou aqui para vos guiar, há muito o compreendi e compreendi porque sou persistente onde vocês são preguiçosos e lamechas; racional e superiormente culto, onde vós sois ignorantes e emotivos. Descartes no disse: "a distribuição dos males e dos bens parece-vos inequitável ? Mudai antes de desejos, em vez de quererdes mudar a ordem do mundo"; "adoptai uma visão sinóptica sobre a desigual distribuição dos bens e dos males " (Platão); "adoptai o ponto de vista da Substância, do necessário desenrolar dos seus modos" (Espinosa); "adoptai o ponto de vista de Deus, mónada suprema e entendimento perfeito, geometral, de todas as perspectivas" (Leibniz). Em suma, mudai de perspectiva, mais uma vez, e logo vereis como toda essa poeira de pequenos sofrimentos, todos esses males, todas essas desordens, eram apenas o outro aspecto, a outra face, ou o caminho mais longo, mas o mais seguro, para a chegada do Espírito Santo (não, o do banco, o outro). "Quando se escreverá finalmente alguma coisa do ponto de vista de uma piada superior, isto é, segundo a visão do Bom Deus, lá em cima", perguntava Flaubert, de modo zombeteiro. Pois bem, aqui está, sou eu que o digo, eu passos coelho, que me tornei o dissipador das nuvens negras e anuncio o céu azul e as águas límpidas para todos aqueles que acreditam em mim. " Foi esta a mensagem de Natal e foi o monstro que a disse. E disse mais: é assim que, inspirando-se nos meus protocolos, se escreverão em breve as grandes páginas da sujeição - até, e inclusive, as máquinas totalitárias, no alto da escala do despotismo e, em baixo, impossível de serem confundidos com elas, mas partilhando contudo este traço, essas máquinas ultraliberais que, afinal de contas também ordenam: mudai de perspectiva ! aderi ao ponto de vista da inevitável globalização ! aceitai o da harmonização espontânea efectuada pela mão invisível do mercado mundial ! e vereis como a vossa vida desfeita, humilhada, perdida, participa também num plano cuja fórmula secreta está nas mãos desses novos hegelianos que são os senhores de Wall Street, os fundos de pensões californianos, a Merkel, os mercados, os credores, os meus senhores e donos e eu, passos coelho, a sua voz, o mensageiro enviado para vos trazer a Boa Nova. Acreditai, arrependei-vos e sereis salvos por mim.
P.S. - Graças a Deus, não sou católico :