“Svendenborg chamava
às suas visões memorabilia”
Arthur Rimbaud
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Que demónio terá instilado em Pedro Passos Coelho
(PPC) a ideia messiânico-sebástica, inspirada num milenarismo apocalíptico
e escatológico, segundo a qual teria nascido para ser o “salvador da
Pátria”, o homem providencial que iria tirar Portugal da sua inércia e da
sua situação catastrófica, e uma espécie de Beato Salú destinado a salvar
os “empreendedores” e a condenar a uma irremediável fogueira os inertes, os
preguiçosos e todos aqueles que dependem de subsídios para sobreviver e
que estão a impedir que o país se desenvolva e cresça segundo os desígnios
iluminados dos primeiros ? Se me refiro a um demónio (retirando-lhe a
carga teológica) é justamente porque não há nenhuma explicação racional e
lógica para a representação que este homem faz de si mesmo e do seu papel
histórico. Não será certamente pela sua estatura intelectual, já que não
se lhe conhece um estudo, um ensaio, vá lá, uma única ideia solitária que
lhe confira esse estatuto. Aliás, para saber do que falo, dei-me ao
trabalho de ler a “obra” que publicou em 2010 (Difel) e que intitulou
singelamente “Mudar”. Confesso que foi uma tarefa penosa, quase uma
tortura: maçudo, enfadonho, mal escrito (até para os padrões daqueles que,
por meia dúzia de tostões, de dispõem ao frete de redigir as obras que
outros hão-de assinar), o “livro” é uma sucessão de ideias vagas,
propósitos piedosos e teses alheias, mal digeridas e pior compreendidas.
Há mais ensaística, ideologia e argumentação numa lista telefónica das
Páginas Amarelas do que neste amontoado de torpezas mascaradas de boas
intenções. Perplexo, constato o seguinte: o “livro” foi escrito segundo
uma atroz e infindável sucessão mecânico-associativa que remete para o
caos de uma mente em negação (não sou eu que estou doente, é o mundo !) e
que se esgota nalgumas ínfimas e últimas essencialidades e “verdades”. PPC
(ou alguém por ele) utiliza farrapos de linguagem, reduzindo o material
linguístico a dois registos essenciais: clichés e banalidades, tudo
organizado num ritmo redundante, pontuado aqui e acolá por catadupas
verbais que levam a própria linguagem ad
absurdum. É o preço a pagar por formatar a realidade à nossa medida:
reduzir tudo a um campo de batalha monomaníaco em que ficam restos e
dejectos verbais; vive-se do fragmento, do aforismo, da ruína verbal. Mas,
o “livro” tem um mérito: não esconde nada deste projecto demoníaco que
veio a ser posto em prática, destruindo o país e deixando atrás de si um rasto
de pobreza, de humilhação e de indignidade. Como diz Ingmar Bergman no
começo de “O Ovo da Serpente”: “Através da fina membrana, vê-se já o
réptil em formação”.
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Verdadeiramente, PPC é o “homem cheio de
qualidades”, ou a antítese de Ulrich, o protagonista do romance “O Homem
Sem Qualidades”, de Robert Musil. Lembrar-se-ão que essa personagem
concentra o seu agir/pensar, ou o seu pensar/agir, no “sentido de
possibilidade” dos acontecimentos e pratica um “ensaísmo” como forma de
vida. Precisamente o contrário da ilusão de PPC: julgava ele que ignorando
a possibilidade dos acontecimentos, ou seja, a realidade concreta e
material da sociedade e dos homens, a realidade haveria de se vergar a um
pensamento tão claro e sublime e a “verdade” dos postulados que enuncia
teria necessariamente que aparecer como uma evidência escrita na pedra
para que todos os homens a entendessem e aceitassem. Nunca saberemos quem
encontrou ele na Estrada de Damasco, mas conhecemos os efeitos nefastos do
seu providencialismo. Como muito bem viu Pacheco Pereira, haveremos de
sair desta crise algum dia, superando os seus aspectos económicos e
financeiros. Mas, no que concerne às feridas morais, éticas e sociais,
essas nunca hão-de cicatrizar definitivamente. Por tudo isso, PPC é verdadeiramente
um “escritor” da crise, ou o “escritor” da crise. Acima de tudo, “Mudar” é
uma autobiografia intelectual, ou melhor, uma radiografia, cinzenta e
árida, mostrando um interior vazio e revelando uma ossatura sinistra.
Entenda-me quem o quiser fazer.
Arnaldo Mesquita