quarta-feira, 31 de julho de 2013

MARTIN EM BERLIM (II)




As biografias de Luchino Visconti (sigo a de Laurent Schifano, a mais rigorosa e exaustiva) referem um dos factos essenciais da vida do cineasta: Visconti, assim como outras personalidades do cinema italiano, nomeadamente Roberto Rossellini, Luigi Chiarini e Aldo, entre outros, alistou-se nas fileiras da Resistência e participou nas actividades clandestinas dos grupos partisans. Foi detido em casa de um amigo, onde se tinha refugiado pouco depois da carnificina das Fossas Ardentinas. O dirigente nazi Koch, que conduziu pessoalmente o interrogatório de Visconti, deu ordem para que fosse fuzilado. Passou nove dias numa cela de um metro quadrado, antes da sua transferência para prisão Celio para ser entregue aos alemães. A aproximação das tropas aliadas e o ambiente final de caos e confusão fizeram com que os próprios guardas o ajudassem a escapar. Esta marca traumática nunca o abandonou.

Durante os anos sessenta falou-se a todo o momento de compromissos. Pessoalmente, sempre achei que há uma espécie de erro de princípio quando se postula um cinema ou uma literatura obrigatoriamente comprometida politicamente. Um filme não é comprometido de antemão. Torna-se ou não comprometido, quer o realizador o proponha ou não. Alguém se compromete porque tem uma ideia do mundo pela qual daria a vida (por isso invoquei atrás o episódio da condenação à morte de Visconti), e essa é uma atitude ética. Nessa aposta, o máximo que um homem arrisca é a sua própria pessoa. Visconti nunca quis ser um ideólogo, mas somente um realizador de cinema e, como tal, sabia intuitivamente que a verdade da arte não pode residir nunca numa clara mensagem doutrinária, por mais autêntica que seja, mas apenas na sua beleza herética. Apesar do compromisso pessoal de Visconti (repito: pessoal e não artístico), foi alvo de críticas muito agressivas por parte da esquerda, que o acusava de ter representado uns príncipes da indústria que na sua adesão ao Mal e na sua própria queda, são reflexo de uma espécie de auréola épica que, de algum modo, podia estender-se também ao nazismo. Quem assim pensa, e são muitos, não compreendeu nada do filme. Se Visconti não fosse um refinado aristocrata, jamais poderia ter dissecado esse mundo como o fez: se não tivesse retido na memória os pormenores da sua infância (o palácio da Via Cerva, as grandes mesas cobertas de linho, a legião de criados e de servidores, o esplendor do luxo e da riqueza) e também não teria a capacidade de actualizar as suas sensações. Ainda mais, na própria desmesura e exaltação da decadência, no fundo e na forma, existe uma profunda sátira, quase caricatural, de tudo aquilo que o Terceiro Reich tinha de "mise-en-scène", de imitação e pastiche de uma apoteose fingida. O esquema teatral de "Os Malditos", a sua grandiloquência operática, é justamente o que lhe permite explicar a essência do fascismo como simulacro. Dito isto, por muito que eu ame exaltadamente este filme, por muito que os seus defeitos me enterneçam e os seus méritos me incomodem (um dia explicarei este paradoxo), tenho que reconhecer que a História não lhe deu razão. A sua visão das ascensão do nacional-socialismo não se ajusta aos factos conhecidos. O destino dos Krupp - cujo feudo industrial tinha o seu núcleo na cidade de Essen e que são representados no filme pela família Essenbeck - desmente o desenlace crepuscular concebido por Visconti. Na realidade, os grandes industriais que sobreviveram ao nazismo e que inclusivamente reconstruiram os seus impérios no pós-guerra, são mais numerosos do que aqueles que foram destruídos pelo regime. Verifico no alfarrábio que Alfred Krupp, membro das SS, que deteve mais de cem fábricas em Auschwitz, onde trabalhavam deportados reduzidos à condição de escravos e crianças de todas as idades forçados a contribuir para o esforço de guerra até ao esgotamento, foi condenado pelo Tribunal de Nuremberga a 12 anos de prisão. Cumpriu três e foi-lhe devolvida a fortuna. Por outro lado, o Terceiro Reich promoveu uma imensa legião de pequeno-burgueses medíocres, para quem os referentes intelectuais e culturais da grande civilização centro-europeia eram zeros absolutos: vendedores de electrodomésticos e de apólices de seguros, fabricantes de insígnias com a efígie de Hitler, produtores de aspirinas... gente que não aparece em nenhum momento do crepúsculo dos deuses narrado por Visconti. De resto, o cineasta nunca se preocupou muito com a verdade histórica, nem o filme se situa nos limites estritos do contexto histórico. Vai muito para além disso. Num determinado momento, as personagens convertem-se em símbolos. Não é estritamente um filme sobre a origem do nazismo, mas um filme situado nessa época a fim de gerar uma determinada catarse por meio das personagens: é toda uma fábula de denúncia da aliança entre nazis e os grandes industriais alemães. Poderia qualificar-se, como tem sido dito, como uma espécie de Macbeth moderno, onde os magnates da indústria substituem os reis imaginados por Shakespeare. O instrumento do seu poder é o dinheiro. O templo do seu culto é o coração das fundições, essa entranha ardente das fábricas.
De algum modo, Visconti considera que essa história bestial de vontade de poder tem a sua versão contemporânea nos acontecimentos que começam a 2 de Fevereiro de 1933, no momento em que o nazismo se impõe à Alemanha, como se fosse uma data fatídica semelhante às que são anunciadas pelas bruxas da floresta de Birnam. Na biografia que já citei, Laurent Schifano conta que, depois da guerra, o patriarca dos Krupp, sentado no grande salão da sua casa sofria de alucinações e apontava tremendo as sombras espectrais que se amontoavam nas vidraças das janelas exigindo vingança: trabalhadores nus, com o corpo avermelhado pelas chamas, mulheres esfarrapadas, crianças judias. "Quem são estas pessoas", murmurava atormentado como Macbeth: "o que se passa comigo, que qualquer ruído me espanta ? Conseguirei lavar todo este sangue das minhas mãos com todo o oceano de Neptuno ?".
Voltando ao filme: a família desintegra-se, estalam as rivalidades e os ressentimentos. "A moral privada está morta" afirma Aschenbach, o oficial das SS (Helmut Griem) " e antes que as chamas do Reichstag se extingam, os homens da velha Alemanha ficarão reduzidos a cinza", "Houve um tempo em que os sentidos se me congelavam ao ouvir ruídos na noite, e o meu cabelo eriçava-se ao ouvir um conto aterrador. Saciei-me de espantos, e o horror, companheiro da minha mente homicida, não me assusta". Com efeito, os jovens eliminam os velhos, a luta pelo poder desencadeia uma espiral de violência e ambição em que tudo é permitido. O drama, como anunciou Visconti, estala em torno da rainha das abelhas, a mãe nocturna e demoníaca, a mãe instigadora, a mão investida de poder que domina o filho e cuja mão manipula todos os fios, a mãe castradora, cúmplice das preversões e dos crimes, a mãe que finalmente cai e morre através da consumação profanadora do incesto, caindo ela mesma vítima da criatura que engendrou e alimentou, de um modo semelhante à queda dos deuses arrastados pelas forças que eles próprios haviam despertado. Num retorno freudiano, Visconti recupera nos cadernos infantis de Martin um desenho representando uma mulher sangrando e um menino que empunha um punhal e que carrega a seguinte frase: "Martin mata a mamã". A origem do Mal está nesse germe, onde se detectam já os primeiros sintomas (o ovo da serpente).

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