quarta-feira, 31 de julho de 2013

MARTIN EM BERLIM (II)




As biografias de Luchino Visconti (sigo a de Laurent Schifano, a mais rigorosa e exaustiva) referem um dos factos essenciais da vida do cineasta: Visconti, assim como outras personalidades do cinema italiano, nomeadamente Roberto Rossellini, Luigi Chiarini e Aldo, entre outros, alistou-se nas fileiras da Resistência e participou nas actividades clandestinas dos grupos partisans. Foi detido em casa de um amigo, onde se tinha refugiado pouco depois da carnificina das Fossas Ardentinas. O dirigente nazi Koch, que conduziu pessoalmente o interrogatório de Visconti, deu ordem para que fosse fuzilado. Passou nove dias numa cela de um metro quadrado, antes da sua transferência para prisão Celio para ser entregue aos alemães. A aproximação das tropas aliadas e o ambiente final de caos e confusão fizeram com que os próprios guardas o ajudassem a escapar. Esta marca traumática nunca o abandonou.

Durante os anos sessenta falou-se a todo o momento de compromissos. Pessoalmente, sempre achei que há uma espécie de erro de princípio quando se postula um cinema ou uma literatura obrigatoriamente comprometida politicamente. Um filme não é comprometido de antemão. Torna-se ou não comprometido, quer o realizador o proponha ou não. Alguém se compromete porque tem uma ideia do mundo pela qual daria a vida (por isso invoquei atrás o episódio da condenação à morte de Visconti), e essa é uma atitude ética. Nessa aposta, o máximo que um homem arrisca é a sua própria pessoa. Visconti nunca quis ser um ideólogo, mas somente um realizador de cinema e, como tal, sabia intuitivamente que a verdade da arte não pode residir nunca numa clara mensagem doutrinária, por mais autêntica que seja, mas apenas na sua beleza herética. Apesar do compromisso pessoal de Visconti (repito: pessoal e não artístico), foi alvo de críticas muito agressivas por parte da esquerda, que o acusava de ter representado uns príncipes da indústria que na sua adesão ao Mal e na sua própria queda, são reflexo de uma espécie de auréola épica que, de algum modo, podia estender-se também ao nazismo. Quem assim pensa, e são muitos, não compreendeu nada do filme. Se Visconti não fosse um refinado aristocrata, jamais poderia ter dissecado esse mundo como o fez: se não tivesse retido na memória os pormenores da sua infância (o palácio da Via Cerva, as grandes mesas cobertas de linho, a legião de criados e de servidores, o esplendor do luxo e da riqueza) e também não teria a capacidade de actualizar as suas sensações. Ainda mais, na própria desmesura e exaltação da decadência, no fundo e na forma, existe uma profunda sátira, quase caricatural, de tudo aquilo que o Terceiro Reich tinha de "mise-en-scène", de imitação e pastiche de uma apoteose fingida. O esquema teatral de "Os Malditos", a sua grandiloquência operática, é justamente o que lhe permite explicar a essência do fascismo como simulacro. Dito isto, por muito que eu ame exaltadamente este filme, por muito que os seus defeitos me enterneçam e os seus méritos me incomodem (um dia explicarei este paradoxo), tenho que reconhecer que a História não lhe deu razão. A sua visão das ascensão do nacional-socialismo não se ajusta aos factos conhecidos. O destino dos Krupp - cujo feudo industrial tinha o seu núcleo na cidade de Essen e que são representados no filme pela família Essenbeck - desmente o desenlace crepuscular concebido por Visconti. Na realidade, os grandes industriais que sobreviveram ao nazismo e que inclusivamente reconstruiram os seus impérios no pós-guerra, são mais numerosos do que aqueles que foram destruídos pelo regime. Verifico no alfarrábio que Alfred Krupp, membro das SS, que deteve mais de cem fábricas em Auschwitz, onde trabalhavam deportados reduzidos à condição de escravos e crianças de todas as idades forçados a contribuir para o esforço de guerra até ao esgotamento, foi condenado pelo Tribunal de Nuremberga a 12 anos de prisão. Cumpriu três e foi-lhe devolvida a fortuna. Por outro lado, o Terceiro Reich promoveu uma imensa legião de pequeno-burgueses medíocres, para quem os referentes intelectuais e culturais da grande civilização centro-europeia eram zeros absolutos: vendedores de electrodomésticos e de apólices de seguros, fabricantes de insígnias com a efígie de Hitler, produtores de aspirinas... gente que não aparece em nenhum momento do crepúsculo dos deuses narrado por Visconti. De resto, o cineasta nunca se preocupou muito com a verdade histórica, nem o filme se situa nos limites estritos do contexto histórico. Vai muito para além disso. Num determinado momento, as personagens convertem-se em símbolos. Não é estritamente um filme sobre a origem do nazismo, mas um filme situado nessa época a fim de gerar uma determinada catarse por meio das personagens: é toda uma fábula de denúncia da aliança entre nazis e os grandes industriais alemães. Poderia qualificar-se, como tem sido dito, como uma espécie de Macbeth moderno, onde os magnates da indústria substituem os reis imaginados por Shakespeare. O instrumento do seu poder é o dinheiro. O templo do seu culto é o coração das fundições, essa entranha ardente das fábricas.
De algum modo, Visconti considera que essa história bestial de vontade de poder tem a sua versão contemporânea nos acontecimentos que começam a 2 de Fevereiro de 1933, no momento em que o nazismo se impõe à Alemanha, como se fosse uma data fatídica semelhante às que são anunciadas pelas bruxas da floresta de Birnam. Na biografia que já citei, Laurent Schifano conta que, depois da guerra, o patriarca dos Krupp, sentado no grande salão da sua casa sofria de alucinações e apontava tremendo as sombras espectrais que se amontoavam nas vidraças das janelas exigindo vingança: trabalhadores nus, com o corpo avermelhado pelas chamas, mulheres esfarrapadas, crianças judias. "Quem são estas pessoas", murmurava atormentado como Macbeth: "o que se passa comigo, que qualquer ruído me espanta ? Conseguirei lavar todo este sangue das minhas mãos com todo o oceano de Neptuno ?".
Voltando ao filme: a família desintegra-se, estalam as rivalidades e os ressentimentos. "A moral privada está morta" afirma Aschenbach, o oficial das SS (Helmut Griem) " e antes que as chamas do Reichstag se extingam, os homens da velha Alemanha ficarão reduzidos a cinza", "Houve um tempo em que os sentidos se me congelavam ao ouvir ruídos na noite, e o meu cabelo eriçava-se ao ouvir um conto aterrador. Saciei-me de espantos, e o horror, companheiro da minha mente homicida, não me assusta". Com efeito, os jovens eliminam os velhos, a luta pelo poder desencadeia uma espiral de violência e ambição em que tudo é permitido. O drama, como anunciou Visconti, estala em torno da rainha das abelhas, a mãe nocturna e demoníaca, a mãe instigadora, a mão investida de poder que domina o filho e cuja mão manipula todos os fios, a mãe castradora, cúmplice das preversões e dos crimes, a mãe que finalmente cai e morre através da consumação profanadora do incesto, caindo ela mesma vítima da criatura que engendrou e alimentou, de um modo semelhante à queda dos deuses arrastados pelas forças que eles próprios haviam despertado. Num retorno freudiano, Visconti recupera nos cadernos infantis de Martin um desenho representando uma mulher sangrando e um menino que empunha um punhal e que carrega a seguinte frase: "Martin mata a mamã". A origem do Mal está nesse germe, onde se detectam já os primeiros sintomas (o ovo da serpente).

terça-feira, 30 de julho de 2013

FADO MENOR

Nada nos tinha preparado para isto. Infelizmente, a tristíssima nação portuguesa caiu nas mãos de uma gente ignorante (falta-lhes leitura, estudos, reflexão e pensamento), subserviente de interesses obscuros (que não são, certamente, os do povo português), supinamente incompetente e sumamente estúpida. A sua competência política iguala a de um asno. É altura de lhes explicar uma diferença essencial entre dois conceitos nucleares da filosofia política e que, obviamente, têm um reflexo directo na praxis. Não falo de cátedra (que não possuo, nem nunca ambicionei possuir), nem dou uma lição: procuro apenas compreender melhor a inumanidade e as monstruosidades intelectuais e políticas de um tempo desarticulado. Assim, esta gente precisava de compreender a diferença entre força e poder. Eles têm a força, que lhes advém do facto de terem sido eleitos democraticamente, com um mandato claro de governação. Por outro lado, o poder resulta de um esforço conjunto de todas as pessoas. Nenhuma força é suficientemente grande para vencer o poder; onde quer que a força enfrente o poder, sucumbe. Eles têm a força: legitimidade formal, poder legislativo e executivo, domínio do aparelho repressivo. Nunca terão o poder; não têm a inteligência, o carisma e a cultura suficientes para forjarem os instrumentos necessários para tal. Apesar de estarem loucamente apaixonados pelo poder, aquilo que eles amam tão ardorosamente é uma imagem, um ícone, um fetiche, um fantasma.

domingo, 28 de julho de 2013

PUNO - PERU

 
                                                               Por Sofia P. Coelho
 

SEJER

Não é pequeno feito, nem uma proeza despicienda, ter conseguido destruir em dois anos um país com 900 anos de História. Insatisfeitos com o trabalho realizado e querendo completá-lo, levando-o ao zénite que o seu génio lhes promete  e a que o seu talento os habilita, os nossos homens da direita querem que também a língua, quiçá a literatura e as artes se conformem à ideia que fazem da Nação, imortalizando-os numa eternidade de semi-deuses que não só criam uma nova realidade, como também forjam no aço a linguagem que a representa e lhe dá expressão. Os tratos de polé a que sujeitam a língua mãe, a pobreza do discurso, a indigência da sintaxe, têm por fim criar uma nova língua, que há-de assentar como uma luva no novo homem que almejam criar: empreendedor, poupado, escorreito,amoral. Contrariam a tese de Michel Foucault, segundo a qual a crise do poder começa por ser uma crise do discurso. Sem querer repetir a analogia com a "novilíngua" inventada por George Orwell em 1984 (Pacheco Pereira dixit), direi que estamos em presença de um mecanismo de engenharia linguística sem precedentes na nossa História: a transformação da nossa língua num instrumento operativo ao serviço da política. Assim, depois do "cidadões" e do "façarei" de Cavaco Silva, dos inúmeros dislates do falecido Relvas, ouvimos esta semana Passos Coelho a bradar perante as televisões "Sejemos realistas !". Deve ser um novo verbo, o verbo sejer, que se conjugaria assim;

Eu seje, tu sejes, eles sejem, nós sejemos, eles sejem

Não sei se a Academia já terá incoporado este novo verbo, nem o que Malaca Castanheiro terá a dizer sobre a sua justeza e adequação ao português moderno. Pouco importa. De repente, lembro-me de remodelar um célebre "slogan" do Maio de 68, que passaria a rezar deste modo:

"Cidadões, sejemos realistas, exigemos o impossível !"

sábado, 27 de julho de 2013

MARTIN EM BERLIM (I)



Chamou-se em português "Os Malditos", "La Caduta degli Dei" no original, "Götterdamerung" em alemão. É talvez o mais complexo e labiríntico filme de Luchino Visconti. Tudo começa num ambiente intimista; um jovem pianista (Gunther) toca perante toda a família, reunida para celebrar o aniversário do patriarca da família Essenbeck, a câmara inicia um movimento envolvente em torno do círculo familiar. Tudo está disposto (o cenário, as personagens principais e secundárias) para que o filme reflicta a concepção viscontiana da vida: teatral, cerrada e trágica. É uma espécie de quadro ilusoriamente idílico e aparentemente pacífico, prestes a ser destroçado pelas novas forças que vêm romper o equilíbrio do recanto centro-europeu com o fragor e o rugido das modernas fundições do aço: o clamor do fogo. O fogo dos altos fornos siderúrgicos e do incêndio do Reichstag. Os interesses do império industrial germânico são abocanhados quando entram ao serviço de uma nova noção de Estado, implacável e totalitária. Na família, o conflito dinástico roda em torno da mãe, a abelha-mestra. Entretanto, pelas ruas profanadas, entre fogueiras e cinzas de livros e partituras, desfilam as comitivas nacional-socialistas entoando a "Horst Wessel Lied" e passma os esquadrões bárbaros, impantes de valentia e cegos, como os deuses de Wagner, sob o céu turvo de Berlim.

Todavia, o que torna este filme estranhamente inquietante é o modo como as imagens conseguem fazer com que dois planos completamente opostos  - o moral, centrado numa crítica mordaz, e o estético, diluído num estilismo decadente - apareçam relacionados por uma trama que, em algumas ocasiões, deixa transparecer um vago fascínio. A Alemanha que atrai Visconti é ambígua: é a Alemanha do desastre, das grandes catástrofes em que se funda a vontade de poder - como dizia Paul Claudel: "A ideia de uma catástrofe enorme e real é tão arrebatadora para os alemães, como foi para os franceses a ideia da Revolução" - mas é também a Alemanha de Wagner, obcecada com a morte e o impossível. É a Alemanha de Thomas Mann, especialmente a que foi descrita em "Os Buddenbrook", no qual se inspira, e é a Alemanha de Nietzsche e de Freud. A Alemanha do Iluminismo e a Alemanha das sombras. A Alemanha eterna, fechada sobre si mesma, romântica, faústica e demoníaca. A Alemanha dos filmes de Fritz Lang e de F.W. Murnau. Na mesma cena da abertura encontramos esta dicotomia: frente à sonata de Bach interpretada por Gunther como recital de álgebra pura, estão os acordes estridentes e grotescos de Martin, que entoa uma canção de cabaret, travestido, com as sobrancelhas depiladas e as pestanas postiças, parodiando Marlene Dietrich em "O Anjo Azul" de Joseph Von Sternberg. É essa linha de demarcação entre a civilização e a barbárie que assinala a beira do abismo, não só no subconsciente colectivo alemão, mas também, provavelmente, na mente de Visconti.
A sua perspectiva cinematográfica responde às mesmas tensões que conformam a sua personalidade fragmentada, oscilando entre a sua condição de aristocrata e a sua adesão à ideologia marxista, entre a sua fidelidade conceptual ao realismo revolucionário e o seu amor declarado pelo melodrama e o decadentismo, entre a exaltação de um futuro utópico e o apego sentimental, íntimo, freudiano a um passado impossível. Aos piores anos de ascensão do nazismo (objecto de um outro grande filme, "O Ovo da Serpente" de Ingmar Bergman) contrapõe a pujança agressiva, caricatural, fálica, representada pelo couro engraxado e pelo caos de correias e arreios militares da Juventude hitleriana e das S.A., com a sensibilidade esteticizante reflectida nos sumptuosos  trajes, das perucas, dos véus vaporosos e dos pós de maquilhagem, que emanam um perfume nostálgico e assinalam os traços de uma civilização aristocrática, talvez demasiado débil, quebradiça, moribunda. Talvez nada atraísse tanto Visconti, tão preocupado com os cânones e a harmonia, como as transgressões de Martin, o herdeiro dos Essenbeck: as cenas mais fortes são aquelas que melhor reflectem os sentimentos desencontrados de atracção e repulsa: as perversões morais e sexuais, a violação, os crimes, o mundo pétreo do universo familiar, uma espécie de destino a que é impossível escapar e que culmina no grande deslumbramento sombrio do incesto. Curiosamente, esse mesmo fascínio permite ao cineasta sublinhar aquilo que em termos marxistas poderemos chamar de contradição principal. Que o mesmo é dizer: a que existe entre o poderio industrial dos Essenbeck, o seu passado aristocrático fundado na ordem patriarcal e em determinados valores, o seu grande legado musical, representado pelas sublimes sinfonias clássicas: Bach, Mozart, Mahler, Beethoven, Wagner. Por outro lado, as dissonâncias que resultam da subordinação dos supostos guardiães da civilização ao Terceiro Reich, cavando a sua sepultura quando colaboram com os nazis, a quem desprezam violentamente ("Onda imensa de barbárie excêntrica e vulgaridade primitiva, plebeiamente democrática", no dizer de Thomas Mann). Creio que seria este o único modo de afirmar o contraste, ou o paradoxo, elemento essencial para a compreensão da alma humana. A contradição coloca o espírito em alerta e aguça o engenho. Sem contradição não há drama. E é precisamente o drama que move Visconti como artista e como homem. E foi também desse modo que escolheu comprometer-se politicamente.




THE SUN ALWAYS SHINES ON TV



E, no entanto, ela continua a flutuar, a Jangada de Caca. Continua a flutuar, embatendo em rochedos, encalhando em baixios, uma espécie de "nave dos loucos", arrastando atrás de si ruínas e escombros, putas e sifilíticos. O capitão é cego dos dois olhos, com um gostinho especial pela provocação e uma colossal ignorância das artes da navegação. Por sua vez, o imediato está prenhe de "sentido de Estado" e de sentimentos patrióticos. O resto da equipagem parece saída de um filme de terror em sessões contínuas. A mastreação está podre, o casco mete água, as ratazanas acabaram com todos os víveres, antes de a abandonarem ao seu destino. E continua, por milagre, a flutuar.

Aqueles que nela viajam, só pedem aos políticos que lhes não destruam os meios de sobrevivência material . Expatriados, petrificados, fecham os olhos ao analfabetismo, brutalidade , vulgaridade e narcisismo que minam os pátios do recreio, agora dominado pelos leprosos. Porém, não nos iludamos com a aparente fraqueza desses onanistas: a desumanidade absoluta introduz na Jangada um laço social incompatível com o optimismo beato que, de modos vários, se constitui como o credo desta gente, Neste "mundo do crime", os dominadores nunca se cansam de exercer o domínio. A sua visão do mundo, o acto de fé ideológico que os move, a sua ociosidade e os seus prazeres sádicos, multiplicam o gosto pelo poder. E mantêm a Jangada de Caca a flutuar sem destino.

LAGO TITICACA - II





                                                     Por Sofia P. Coelho

sexta-feira, 26 de julho de 2013

LAGO TITICACA - PERU




 

                                                   
                                                     Por Sofia P. Coelho


quinta-feira, 25 de julho de 2013

OLÁ LISBOA


Olá Lisboa, pela primeira vez
Olá Lisboa, pela primeira vez

Lembro-me de ti
Como se fosse um regresso a casa
As ruas escuras à noite
O medo de quem quer voltar

E passo por ti
Condenado a sentir um vazio
Na hora de te abandonar
A lembrança de quem quer ficar
A cidade por descobrir
Um adeus, vou partir

Lisboa, és só tu e eu
Lisboa, és só tu e eu

Confesso-me a ti
Ó cidade de noite encantada
Lembras-me a vontade
Hoje eu vou ficar

Agarro-me a ti
Confrontado a saudade que sinto
A hora está-se a aproximar
As memórias de quem quer voltar
Um segredo que vou descobrir
O adeus, vou partir

Lisboa, és só tu e eu
Lisboa, és só tu e eu

E passo por ti
Condenado ao vazio
A ansia de querer voltar
O adeus que não te vou dizer

Espero aqui
Com o mar controlado
A história de ter um passado
A idade de te conhecer
A cidade por descobrir
O adeus, vou partir

Lisboa, és só tu e eu
Lisboa, és só tu e eu
 
Tim / Tara Perdida

A JANGADA DE CACA



O que Portugal precisa mesmo é de desaparecer, viajar para outra galáxia, mudar de dimensão, extinguir-se. Trata-se de uma bela ideia que correu mal ao criador por maldição, falta de manutenção, ausência de acompanhamento, etc. Para além do caos político, financeiro e social, para além deste enorme atoleiro em que chafurdamos sem vislumbrar uma margem, um galho seco a que nos agarrarmos, é o conceito, o ideal que morre todos os dias. Não há país que aguente tanta atrocidade, não há nação que sobreviva a tanta estupidez. Se o problema fosse só de uma classe, de um tipo de gente ou de um bando de malfeitores a solução seria fácil. Trabalhosa mas fácil. A restante comunidade eliminaria a raiz do mal e voltaria a restaurar a organização. Mas, infelizmente não. Uma nação morre quando ninguém quer saber dela para nada e a deixa atrofiar dia após dia limitando-se a cumprir as suas funções mais básicas e mais essenciais de bicho. Foram gerações atrás de gerações empenhadas nesta árdua tarefa de enterrar o passado glorioso, as memórias agradáveis, os sacrifícios dos antepassados. Uma após outra, o seu objectivo é instalar-se no poder, alimentar a canalha sem rosto que sempre viveu à grande e apertar o triste, roubar o trabalhador, pisar o desgraçado, numa espiral de mediocridade que acabaria inevitavelmente com qualquer conceito de nação. No séc. XX, só para não andar muito para trás, nos anos setenta uma geração de fascistas foi assaltada por outra de românticos revolucionários e idealistas que não passaram de uma espécie de fascistas “modernaços” mais preocupados em deitar as mãos à travessa do que distribuir a comida. Instalaram-se, serviram-se e dominaram para que hoje outra geração venha tomar conta da mesa. Uma geração sem uma ideia a que possa chamar sua, sem uma personalidade orientada por uma coluna vertebral, um perfeito vazio. Mas altamente eficaz em cumprir as ordens e as orientações recebidas no aviário das jotas, extremamente empenhada em pagar todas as facturas para se poder manter no poder. Assim vai avançando a espiral com o Algarve a meter mais um “l” para ser melhor compreensível aos camónes, assim se apaga completamente a memória de um passado que, mal ou bom, é o que temos e de onde descendemos, esmaga-se a cultura aos níveis mais baixos e mais absurdos a que a criação cultural alguma vez chegou, inventam-se acordos ortográficos de secretaria para destruir a personalidade da língua, baixa-se a espinha a tudo e a todos os que estão lá fora (aos poderosos dizendo sempre que sim, às ex-colónias pedindo muita desculpa pelo ocorrido há séculos, aceitando todo o tipo de desaforo e atrevimento sem reagir), aceitam-se todas as ordens, cumprem-se todas as regras sem discutir. Sem registo de memória, sem personalidade diplomática, sem dinheiro e sem dignidade, estamos mais perto de um país ocupado por uma potência invasora do que de outra coisa qualquer.

E por outro lado que dizer deste povão cobarde e malcheiroso, esperto mas falho de inteligência, manhoso e ignorante? Este povo que tudo aceita por medo, que só tem coragem no café com os amigos, que finge que acredita em tudo não acreditando em nada? Um povo que acha normal explorar os novos, desprezar os velhos e abandonar os seus animais é um povo de merda, um povo que se despreza a si mesmo e que, como tal, assina a declaração da sua inutilidade comunitária. Onde poderá estar o sentido comunitário de um povo que se despreza a si próprio? De um povo alienado e carneiro sem vontade própria que se deixa explorar e ainda que quase agradece no fim?

   Há 20/30 anos atrás o escritor José Saramago lembrou-se de escrever um romance em que a Península Ibérica se separava da Europa pela parte dos Pirinéus e vagueava pelo Atlântico fora. Outros tempos, outras mentalidades. A Literatura tende a embelezar a realidade dando-lhe o menos cruel dos aspectos. Como dizia atrás ao iniciar esta crónica, Portugal precisa de desaparecer. Corrijo: Portugal já desapareceu, é um conceito vago, perdido, nebuloso que já não se consegue vislumbrar muito menos definir. Vagueia perdido pelas várias e possíveis dimensões do espaço à espera que alguma lhe abra a porta e lhe faça o favor de o deixar entrar. Nós, os que aqui estamos não passamos de espectros, fantasmas teimosos que não querem aceitar a realidade, memórias vazias de um tempo que terminou e que não vai continuar nunca mais. Por culpa de todos, sem dúvida. Portugal acabou por mais que continuemos a insistir que isso não é verdade. Só que em vez de se separar da Península Ibérica e vaguear pelo oceano Atlântico como um navio fantasma antes se foi dissolvendo lentamente enquanto boiava fingindo existir, iludido com a sua ideia que afinal não era ideia nenhuma. Portugal acabou, desapareceu como uma jangada de caca.

 

Artur

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A CRÓNICA DE COISÍSSIMA NENHUMA


 

Noite solitária em casa, comando na mão e toca a tropeçar sobre as possibilidades do cabo, estupidez, vazio, absurdo. De repente imagens familiares de Londres, jovens bêbados enrolados em tiras de cabedal e tachas distribuídas ao acaso destroem um Rolls Royce com um pé de cabra só pelo prazer de o fazer enquanto gritam o nome de uma amiga que mora para aqueles lados aos berros. John e Sidney. Demasiado familiar, volto atrás, confirmo. Volto a SID AND NANCY realizado por Alex Cox, um documento importante de 1986 que pretende ilustrar os últimos anos do mítico baixo dos “Sex Pistols”, a sua ruptura com a banda na tour aos Estados Unidos e a relação tormentosa e decadente com a sua companheira Nancy. Havia fotografias dele e dos discos nos cadernos e na cabeça da maioria dos adolescentes do meu tempo, era um dos primeiros ícones de uma geração que adorava aquela postura desafiante, degradada e indiferente de fazer música e de estar na vida. O Punk enquanto atitude filosófica e comportamental morria com o seu melhor acabado ícone em 1979 ao fim de uma jornada de decadência e adição inconsequente. No vazio do maior dos vazios os jovens rejeitavam a vida, a sociedade e tudo o que ela tinha (?) para lhes oferecer. Fechavam-se em buracos escuros, em caves imundas enchendo o ar com álcool, heroína, electricidade e uma batida frenética sob a qual se atiravam ao ar, uns contra os outros em urros imperceptíveis se bem que libertadores. Para trás ficavam os hippies, as flores, a utopia e a destruição dela. Tudo era aborrecido e estúpido, as cidades, as pessoas, a vida de uma forma geral. Não se podia mudar nada porque o mundo voltava sempre à sua ordem por mais que fosse abalado. Nada tinha importância, nem a morte. Escrevo neste momento sobre a minha geração, que embora mais nova, acaba por ser completamente inundada pelo espírito destes tempos de vazio e nulidade. Uma homenagem aos que ficaram pelo caminho e um conforto para os que ainda se interrogam à beira dos cinquenta porque é que ainda cá estão. Na altura a sociedade não era nenhuma espécie de inimigo mas antes um buraco imundo onde nada fazia sentido. Trabalhava-se dia após dia para ter direito a existir, as guerras ou a sua ameaça atravessavam as comunidades sem que a vontade dos cidadãos contasse para alguma coisa. No fim, mortos feridos e estropiados, havia sempre aquele grupo restrito que atravessava os pingos da chuva mas nunca se molhava. Chegava ao outro lado, sentava-se e começava a distribuir ordens e propaganda. Por cá tinha havido uma guerra e a seguir uma revolução. A sociedade mudava, ou fingia mudar, seguia os pensamentos de Lampedusa n’ “O Leopardo”  ( “É preciso mudar para que tudo fique na mesma”). Os partidos tomavam conta da propaganda e da ordem, dividiam entre si, mordiam-se na conquista pelo poder, não permitiam que nada acontecesse sem a sua supervisão. Ficou um breve espaço na música. Aí, graças a dois ou três iluminados da rádio e das artes em geral houve um breve tempo em que todas as semanas choviam bandas do céu, bandas que cantavam em português. Por um breve tempo o recreio esteve aberto no 2001, no “Rock Rendez Vous”, mais tarde no “Johny Guitar”. Mas nesta terra em que eram poucos os “livres” e maioritários os cobardes, tudo se foi apagando lentamente como um bico de gás, um candeeiro a petróleo. A mediocridade e a sacanice voltaram da rua, sentaram-se e continuaram o seu trabalho de organizar e dirigir. Pelo caminho muitos foram os caídos nesta guerra sem armas, muitos foram os que desapareceram antes do tempo com muito ainda para dar. Vivia-se como se não houvesse amanhã…porque de facto nunca houve amanhã nenhum digno desse nome, pelo menos para nós. Sexo, acidentes de carro, overdoses, pontos de chegada de uma destruição voluntária que começava no exterior e terminava em nós. Ninguém julgava que chegaria a ter 40 anos. E quem lá chegou assustou-se porque teve que rever a sua vida, as suas prioridades para um tempo que não existia. No fundo, fomos todos um bocado como o Sid. O mundo e a sociedade eram um caldeirão malcheiroso, uma condenação, um absurdo colossal. Sem razão, sem nexo, sem ponta por onde pegar. Era assim que pensávamos, atitude que nos custou a ausência, o silêncio e a indiferença de tudo e de todos. A geração nascida na década de 60 passou por aqui quase sem deixar rasto, sem vontade de deixar o que quer que seja. Agora, quase a chegar aos 50 (poderei estar enganado, mas estou-me cagando), pensamos exactamente da mesma maneira. E quem disser o contrário ou não tiver opinião é porque já não quer mais chatices nem polémicas ou por medo intelectual. Falo dos livres, dos que nunca estiveram à venda, dos que respeitaram os seus valores. Não me refiro à massa anónima e indiferente que passou pela vida a ser conduzida por todas as vontades menos pela sua. O Sid era completamente chanfrado, decadente, toxicodependente, estúpido e inconsequente. Mas os santos não precisam de atestados de sanidade para se fazer o seu culto. Estampam-se em imagens que se guardam na carteira, em pequenas estatuetas colocadas nos recantos do culto, em Cds  nostálgicos e “colectâneos” que nos aquecem as memórias. O Punk enquanto atitude nunca morreu porque foi apenas o enquadramento de uma vontade tão antiga como a própria Humanidade. Nos anos 70 teve esse nome, um tipo de música, uma espécie de liturgia que o acompanhou. Mas o impulso, a vontade de ser livre, o desprezo pela carneirada e pela hipocrisia existiu em todas as épocas, fez parte de todas as gerações. A nós que nunca cá estivemos, a nós que nunca existimos resta-nos fechar o ciclo de memórias, aguentar as feridas e resistir ao “estado das coisas” até morrer. Deixando algumas lembranças, desenhando alguns momentos, quando conseguimos falar diremos: “Fomos assim. Foi assim. Mesmo quando parece que nada se passou, foi assim. Não temos nada para ensinar nem nada para reclamar a não ser a nossa raiva, a nossa Liberdade.” Quanto ao resto, parafraseando esse grande Punk chamado Luís Pacheco: “Puta que os pariu!”

 

Artur

terça-feira, 23 de julho de 2013

LIVRO DE PONTO

I

Todas as manhãs do Mundo são sem regresso.
Pascal Quignard

Todas as recordações são traços de lágrimas

II

Sobre a obra de Franz Kafka já correram oceanos de tinta; escreveram-se bibliotecas inteiras; produziram-se milhares de palestras e colóquios. Neste mesmo blog se tem escrito a torto e a direito sobre Kafka e os raros livros que escreveu. Esta circunstância, brutal na sua evidência, coloca sérias dificuldades a todos aqueles que pensarem ser capazes de dizer qualquer coisa de novo sobre, por exemplo, um livro como "O Processo": a literatura secundária sobre esta obra é como um vírus: multiplica-se diariamente nas universidades, na ensaística literária, no jornalismo especializado. Parasita todos os elementos (dir-se-ia mesmo: todos os parágrafos), todos os constituintes temáticos, formais e de estilo, esgotando totalmente um texto que parece inesgotável e provocando uma espécie de cansaço ou de saturação que se torna insuportável. Creio, no entanto, que este manancial tem um efeito perverso: por muito fina que seja a análise e por muito fortes que sejam os sistemas que a sustentam - psicanálise, estruturalista, post-estruturalista ou tradicional) não só as leituras propostas se revelam insuficientes, como também tornam a obra progressivamente mais incompreensível. Este paradoxo - que Kafka decerto haveria de apreciar - resulta na impossibilidade de uma leitura espontânea do livro, suprimindo de algum modo a sua capacidade de choque e pavor. No fundo, quanto mais se escreve e se lê sobre "O Processo", mais a obra se torna obscura e incompreensível. Excepto, direi eu, numa acepção marxista, ou seja, numa leitura marxista - a única aceitável - que coloque em evidência o facto de que prisão arbitrária de Joseph K., os tribunais opacos que enfrenta e por vezes desafia, a sua morte literalmente bestial, constituírem o alfabeto primário do totalitarismo. A lógica demencial da burocracia que o romance denuncia constitui o dia a dia das nossas profissões, dos nossos litígios e conflitos, das nossas relações com o aparelho estatal e com a fiscalidade, da passividade dos governados e da estupidez dos governantes, mesmo nas democracias mais perfeitas. Eu disse marxista? Na realidade, queria dizer outra coisa qualquer: queria falar da instabilidade e do carácter espectral da vida moderna e das nossas vidas no inferno do neoliberalismo, queria dizer qualquer coisa sobre uma nova física da indeterminação, queria falar da "loucura" kafkiana e do paradoxo da qual ela procede: de uma via metafísica que lhe garante acesso à modernidade. Eu sei lá o que queria dizer. 




terça-feira, 16 de julho de 2013

LISBOA, CRÓNICA ANEDÓTICA



Leitão de Barros

Portugal, 1930
Sinopse:
Série de episódios seguidos da vida Lisboeta. As várias figuras profissionais do bulício da cidade do ardina, ao polícia, ao militar. Os estudos e o lazer dos alunos. As docas e a faina. Os bairros populares, os monumentos e praças do Comércio e Figueira. O trânsito em Lisboa. As actividades domingueiras, os desportos, os turistas. Os velhos e as crianças, símbolos do fim e início de um ciclo de vida.


"Lisboa é um filme sincero, um filme de arte. Leitão de Barros deve orgulhar-se de o Ter composto, e, com ele, todos os portugueses, porque Lisboa está cheia de alma e do sentimento português". (Brum do Canto, Cinéfilo)

"Uma autêntica obra-prima do cinema portugês, verdadeiramente inovadora pela concepção e pela linguagem na história dessa arte, síntese de caminhos formais, lídima expressão da sua (Leitão de Barros) veia de cronista, talvez a mais sincera do seu brilhante espírito." (...)
"A ideia central de "Lisboa" é juntar o documento e a ficção numa crónica fragmentada que, através de subtis ligações interiores, nos revele progrssivamente aquilo a que poderemos chamar a "alma" da cidade e o seu tempo actual e passado, perene, se assim quisermos. Mas a crónica é também "anedótica", entendendo-se a palavra no seu duplo significado: vinha de "anedota", como episódio, e vinha de "anedota", como "história engraçada". Em nenhum momento, mesmo naqueles em que predomina uma certa forma verista, dura, recortada, claramente influenciada pela escola soviética, o filme se pretende "realista", voltando assim as costas à tradução directa e formalmente carregada do real, que era a regra da escola. Esse propósito é brilhantemente transmitido quando, através, de um simples e espontâneo efeito de distanciação, nos mostra a câmara de Costa Macedo e a sua equipa filmando algumas imagens no Saldanha. Diria que Leitão de Barros organizou um fundo de ficção, episódico, anedótico, é certo, para melhor nos revelar a cidade.
A ideia de fragmentação, de pequenos apontamentos inventados e ligados a outros apontamentos puramente documentais, facilita a crónica (...), a sequência dos factos. E facilita também o trabalho de montagem, que era, de facto, o calcanhar de Aquiles do realizador. Tudo depende da pesquisa, da paciência e da invenção. Por outro lado, a presença de actores misturados com personagens da vida real permite a Leitão de Barros aproveitar a sua capacidade histriónica, digamos, para fazer melhor do que o real.
Não se pode deixar de referir um conjunto de apontamentos ligados a esses actores, velhos e novos, que ainda hoje dão ao filme a sua graça, já que a ficção envelhece menos que o documento: o saloio Estevão Amarante olhando os manequins na montra e replicando ao aviso da empregada Josefina Silva "Não pode ver sem tocar?" com o imediato "Eu até era capaz de tocar sem ver!"; Nascimento Fernandes e as suas mãos maravilhosas seduzindo com boquinhas e piscadelas de olho as bonitas condutoras de automóveis; Vasco Santana e Costinha, no eléctrico do Campo Grande, às voltas com um burro que impede a passagem; o grande Chaby Pinheiro, na sua única aparição cinematográfica, no papel de um vendedor da Feira da Ladra que mostra um corno aos compradores; Alves da Cunha, num momento dramático no Arsenal da Marinha, uma das melhores descrições de ambiente operário do nosso cinema; Teresa Gomes na inenarrável cena de "peixeirada" da Praça da Figueira, com evidentes alusões eróticas de peixes e alhos; Erico Braga, galã convencional, descendo a Avenida da Liberdade no seu carro e declarando-se às bonitas transeuntes; o conto do vigário da bilha quebrada, com Perpétua Santos.
Alguns documentos visuais também denotam um extraodinário poder de observação e ganham um sentido profundo no contexto do filme, como esses velhos dos Inválidos do Trabalho construindo os seus caixões, cena que liga com a terra e , através dela, com uma criança, sintetizando o ciclo da vida. E o pitoresco - como ao longo do filme os mais variados tipos populares - alterna com imagens de beleza pura, de notável recorte plástico, como os marinheiros no veleiro e as suas fainas, ou como as imagens das diferentes formas arquitectónicas da cidade. Leitão de Barros não deixa de nos mostrar o bulício da cidade, o seu movimento, culminando o filme na viva descrição de um domingo lisboeta, onde, a par de uma captação insólita de costumes, se transmite um "domingo desportivo" cheio de interesse - corridas de out-boards, provas de atletismo, desafios de futebol, touradas, etc.
Esta transformação do documento em crónica, esta transfiguração anedótica do real, gerou alguns equívocos, pois se exigiu a Leitão de Barros uma maior dose de "verdade", de "verosimilhança", de "realismo", quando era outra coisa que estava em causa, do mesmo modo que uma crónica de um jornal não é uma reportagem. A nossa crítica mais responsável, durante muito tempo, preferiu "Nazaré" e "Maria do Mar" a "Lisboa, Crónica Anedótica", mas eu creio que este é muito mais moderno, muito mais imaginativo, muito mais original, muito mais "cinegráfico", se assim quisermos."

Luís de Pina, in História do Cinema Português, ed. Europa-América, col. Saber, 1986.



"Leitão de Barros recriou, como ninguém, o que mais tarde chamou o lado "pobrete mas alegrete" do "fatalismo sem revolta" do "povo ribeirinho da velha Lisboa". Sob uma aparência desenvolta (o lado "quadro vivo") o que surge nessa "crónica" é o horizonte fechado de uma cidade sem saídas, presa das suas próprias manhas e armadilhas, que não mais deixaria de insinuar-se, em filigrana ou como nota dominante, em quase todos os filmes (comédias ou dramas) que tiveram Lisboa como cenário dominante. Se houvesse que opor um desmentido cabal à lenda da "ville blanche" (cidade branca), emblema fácil e superficial do filme de Tanner dos anos 80, havia que o buscar em todos esses filmes portugueses, em que nunca se pintou cidade mais "escura" e cujo fulgurante marco inicial é o filme de Barros, certamente um dos mais desapiedados olhares de nós próprios sobre nós próprios."

João Bénard da Costa, Histórias do Cinema, col. Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, ed. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1991.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

MERSAULT EM ARGEL

A sensação mais imediata é de calor. Um calor pegajoso que se entranha através dos poros, amolecendo-nos os ossos. Um calor que turva a mente e domina a vontade, ameaçando tornar-nos lagos de suor. Acontece que não estamos fora desse écran que mostra desde as primeiras sequências o rigor do sol africano, a luz abrasadora que fere as pupilas, a influência do ambiente, que tão fundamental se tornou nas correntes litearárias realistas e naturalistas do séc. XIX. Não nos encontramos sentados na confortável poltrona de uma sala de cinema refrigerada, vendo O Estrangeiro, mas "dentro" do filme, sofrendo uma temperatura capaz de desfazer o esmalte dos dentes e de decompôr num segundo as vísceras de um cadáver. Pertencemos à história que nos é relatada e não somos sequer um extra, ou um figurante que assiste ao julgamento sentado no fundo da sala abanando-se com um leque, ou um passeante anónimo sufocado pela canícula, nem temos um pequeno papel de asilados no hospício de Marengo, a sessenta quilómetros de Argel. Tampouco somos Mersault, o protagonista, com quem é difícil qualquer identificação, talvez porque nos pareça demasiado estranho essa personagem que Visconti tomou de empréstimo a Albert Camus, que rapidamente mata um árabe sem que possa explicar os motivos que o levaram a disparar, para além de uma ofuscação momentânea, devida ao Sol muito forte, e que é julgado em tribunal, não tanto porque tenha tirado a vida a um jovem, que antes tinha atacado o seu amigo e brandido uma navalha, mas sim porque se mostra indiferente em relação à morte da sua mãe. Todavia, ainda que nós mesmos o critiquemos mais por essa indiferença do que pelo assassinato, o rosto que se reflecte no prato de latão, após longos meses de cárcere, mal barbeado e envelhecido, talvez já não seja o de Mersault mas o nosso, o de qualquer ser humano, a quem os acasos da vida, o deslumbramento que conduz paradoxalmente à cegueira, parece ter traçado de antemão um determinado e absurdo caminho que só poderá modificar se for capaz de mentir. Mas Mersault não sabe ou não pode: é incapaz de mentir e talvez desconheça que só pode salvar-se se fingir.

Visconti teve muito em conta, parece-me, o que escreveu o próprio Camus a propósito do seu livro, quando foi publicada a versão americana: "Dans notre société tout homme qui ne pleure pas à l'enterrement de sa mère risque d'être condamné à mort". Note-se que Camus não se refere ao que não sente verdadeiramente a morte da sua mãe, mas ao que não verte publicamente lágrimas, ainda que de crocodilo. Daqui decorre que a novela de Camus nos apresente uma meditação filosófica sobre os riscos que se correm ao dizer a verdade e como o facto de manifestar sem dissimulação os nossos sentimentos nos torna perigosamente distintos dos demais. O que parece condenar a sociedade da época - não nos esqueçamos que a accção da novela e do filme decorre em 1938 na Argel sob domínio colonial francês - é que não se respeitem os costumes, que vão desde não fumar nos velórios até abster-se de ir à praia ou ao cinema quando se está de luto, e ainda menos ter relações sexuais com uma amante ocasional, como parece ser ao princípio Marie Cardona, uma antiga companheira de trabalho de Mersault. Inclusivamente, a própria Marie é surpreendida pela atitude indiferente do seu amigo, quando, depois de observar a gravata e o fumo negro no seu fato, lhe pergunta por quam pôs luto. Alongo-me um pouco sobre estes aspectos, a fim de demonstrar a absoluta fidelidade, quase reverente, que Visconti observa em relação ao espírito e à letra da novela de Camus, fidelidade essa que me parece absolutamente essencial na construção da reflexão ético-moral que o filme encerra : somos ou não responsáveis pelos nossos semtimentos ? a indiferença pode corrigir-se ? existem receitas válidas contra a abulia ?. Essas perguntas surgem enquanto contemplamos o filme e continuam a martelar-nos o cérebro. Nem Camus nem Visconti nos respondem. Aliás, a missão da obra de arte não é a de oferecer respostas, mas a de lançar perguntas. Não responder, sugerir. Visconti utiliza o calor e a luz como uma sugestão - talvez seja o calor solar o responsável, já que nos obstinamos sempre em encontrar um culpado. Mersault pertence a uma estirpe de artistas das obras literárias finisseculares, caracterizados pela ataraxia, pela doença da vontade. Muito embora não seja um artista, mas apenas um empregado menor de uma empresa exportadora de Argel.
Segundo Herbert R. Lottman, biógrafo de Camus, a personagem de Mersault inspirou-se, em parte, na do pintor boémio e noctívago chamado Sauveur Galliero, a quem o escritor conheceu no final dos anos 30. Um dia, depois de saber que a sua mãe tinha falecido, encontrou-o ocasionalmente na esplanada de um bar e deu-lhe os pêsames. Galliero contou-lhe que depois do funeral foi ao cinema com uma amiga, uma mostra de indiferença filial que, segundo parece, surpreendeu Camus, se bem que antes desse encontro fortuito, em Dezembro de 1938, tenha escrito numa página do seu diário: "Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J'ai reçu un télégramme de l'asile..." (Esta história pode ser lida em "Albert Camus", de Herbert R. Lottman, Paris, Éditions du Seuil, 1978).

Marcello Mastroianni, guiado por Visconti, recria essa abulia através de gestos, de um modo indolente de fumar, da apatia com que olha o mundo, excepto, parece-me, no final quando os seus olhos contemplam as paredes da cela e confessa ao sacerdote que tem medo, ainda que, por causa desse medo, não aceite morrer acreditando em Deus. Assim, o diálogo mantido na cela com o sacerdote ,a negação dos auxílios espirituais, e inclusivamente a rejeição da presença e da companhia do padre, com o pretexto de que "para mim o tempo é ouro, não quero perdê-lo com Deus", não são exactamente pensamentos e actos de um obscuro empregado de escritório, mas antes de um porta-voz de Camus (e de Visconti), um autor que vê no absurdo da existência humana a origem da sua rebeldia. Daí que, para Camus, a característica principal do seu herói não seja a sua abulia, tão aparente (não lhe interessa, por exemplo, melhorar a sua condição, nem viajar para Paris, em aí se estabelecer para subir na firma, como lhe propõe o patrão), nem a sua insensibilidade (a morte da mãe não o afecta), nem sequer a sua incapacidade de amar (admite que não ama Marie). mas antes ser um homem obcecado com a verdade, por isso respondendo sempre com a verdade às perguntas que lhe são feitas, quer se trate de responder a Marie quando ela quer saber se a ama ("as palavras não significam nada, mas suponho que não"), como quando lhe perguntam que idade tinha a mãe ("uns sessenta"). Essa fidelidade à verdade faz com que responda com toda a verdade e nada mais que a verdade a tudo quanto lhe perguntam em tribunal. Assim , por exemplo, dirá que ele e a mãe não tinham nada a dizer-se e que foi o Sol que o fez disparar contra o árabe, sem procurar subterfúgios, nem álibis. Do mesmo, Marie dirá tudo quanto fizeram nesse dia, incluindo deitarem-se, circunstâncias que prejudicam o acusado e lhe ditam a sorte.

Comecei por falar da sensação de calor e da luz ofuscante. Gostaria de finalizar com uma consideração sobre os sons, que me parecem fundamentais. Visconti oferece-nos através da percepção acústica os sinais de identificação do lugar, a mistura de referentes que, não obstante, configuram dois âmbitos separados, o árabe e o francês colonial.  Os ruídos externos, que invadem o pequeno e destroçado apartamento de Mersault, e depois a cela que ocupa na prisão, aludem ao transcurso da normalidade, a vida de fora, um mundo distinto, talvez pior, do que o mundo interior em que está instalado o protagonista. Até ao apartamento chegam os ruídos do domingos dos outros, o chamamento do muezzin, os lamentos do cão de Salamano, os gritos da mulher árabe a quem Raymond Sintes quer castigar pelo seu comportamento, e que busca cumplicidade de Mersault, o choro de Salameno pela perda do cão...Os ruídos que chegam até ao estrangeiro que espera a morte na sua cela são muito mais significantes: Mersault passa as noites em vigília, pendente de qualquer ruído que chegue do exterior, porque esse será o anúncio de quem vêm buscá-lo, e ele não quer ser colhido de surpresa. Nesse vigiar constante, que vislumbramos na cara de Mastroianni, no gesto de precipitar-se para a porta da cela, encerra-se o manifesto de Visconti contra a pena de morte. Um tema que a Camus interessava menos que o colocar em evidência o absurdo da existência de quem se sabe "indiferentemente diferente". Precisamente esse aspecto, fundamental na novela, levou Camus a querer intitulá-la "L'Indifférent",em vez de "L'Étranger". Se depois se decidiu por este último foi porque, provavelmente, redunda na dimensão simbólica do texto, um simbolismo mantido no filme e que, num momento-chave, tem também a ver com a percepção auditiva: recordemos que os disparos contra o jovem árabe rompem o "extraordinário silêncio" e "destróem o equilíbrio do dia". Do mesmo modo que a conversa entre Marie e Mersault, através das grades, entre os gritos dos outros presos e dos seus familiares, oferece a mais peremptória imagem da impossibilidade da comunicação e da solidão mais aterradora.

Arnaldo

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A ÁRVORE DE JOSUÉ


                                                A árvore de Josué - Deserto da Califórnia


Normalmente por alturas do Verão sopravam ventos de mudança, mundos desapareciam enquanto outros se começavam a formar, ciclos fechavam-se para que outros se abrissem. A ordem natural das coisas acelerava o passo como uma dona de casa diligente nas limpezas e arrumações, para que tudo estivesse pronto e funcional antes de caírem as primeiras chuvas. Foi no verão que começámos a viver juntos, foi no Verão que cumpri o último dia do meu serviço militar. De manhã à frente do sargento da secretaria, uns papéis, uns carimbos e os votos de felicidades para uma nova etapa da vida. Do quartel saltei para a estação do comboio com o pensamento há muito deitado ao pé de ti a ver-te acordar. Um saco de lona verde com a trouxa de roupa mínima revolvida lá para dentro e uma K7 do último álbum dos U2 no bolso, o “Joshua Tree”. Estávamos juntos há um ano e tudo corria bem apesar do dinheiro ser curto e os horizontes limitados. Estantes de tábuas e tijolos das obras arrumavam os livros num pequeno apartamento suburbano, posters de filmes pendiam das paredes do corredor, tal como os sonhos que mesmo quando não se vivem todos os dias nem por isso deixam de existir. Segurávamos a vida nas nossas mãos através de um equilíbrio inexplicável mas firme que insuflava felicidade em cada gesto, oxigénio em cada movimento, amor em cada esquina do corpo. Cheguei depois do jantar para te encher de beijos antes de passar a porta da entrada, para deixar a camisola e as calças nas escadas e entrar já nu no quarto enrolado em ti como se fosse a primeira vez, como se o amanhã já não existisse. A música foi tocando no velho rádio da cozinha, as cervejas foram viradas as passas fumadas entre os vários actos das saudades insuportáveis, a cerimónia da alegria arrastou-se pelo calor da noite, “entre saliva e suor” como numa canção dos Rádio Macau. Parecia não haver “amanhã” por que de facto não havia mesmo. Era tudo o que menos interessava nestas paragens onde “as ruas não têm nome”, onde o Ser por mais resistente que seja acaba por soçobrar à força implacável do deserto e do tempo. Mas enquanto dura parece um poema a querer pisar o chão, uma harmonia que não deixa de se fazer ouvir, um acorde de vida no universo da aridez e da morte. Uma árvore de Josué teimosa e persistente a gastar cada dia num acto de resistência. Ainda não tínhamos encontrado aquilo que procurávamos nem iríamos nunca encontrar, esse caminho era apenas feito de imagens soltas que se conseguiam ver uma vez por outra. Imagens poderosas que nos lembravam como seria o filme, o filme que sabíamos que existia mas que não conseguíamos ver. Imagens poderosas como aquela noite quente e abafada no Sul em que dois corpos se fundiram num só com gestos de eternidade, em que dois espíritos desenharam a unidade e a origem. E nessas horas fomos felizes, percorrendo ainda que de uma forma breve alguns corredores desse palácio a que chamam felicidade. Um som a tocar rouco pela madrugada dentro, uma relação estranha com a vida que se consegue amar e odiar ao mesmo tempo, as corridas de que somos feitos ou que nos obrigamos a fazer, acelerados seres exaustos que não saem do sítio, como os bonecos de um jogo de matraquilhos. Alguma coisa muda no entanto, alguma coisa terá que mudar com a nossa breve passagem por estas terras secas e violentas, por estas paragens absurdas, por estes caminhos inúteis. Alguma coisa terá que fazer sentido mesmo quando não tem sentido nenhum. Alguma coisa…

Poderá a música mudar a vida das pessoas? Poderá um disco decidir da vida e da morte dos seres? Não sei. Sei apenas que antes que um novo Verão descesse sobre a Terra o teu ventre inchou e sorriu, tivemos o primeiro filho, éramos pais. Numa noite de felicidade quase perfeita alguma coisa nasceu para dar testemunho pelos anos fora, para atestar da sua veracidade, para que não houvesse dúvidas se teria realmente acontecido. Os anos passaram e os ciclos continuaram a fechar-se para que outros se pudessem abrir. O nosso fechou também. Como uma dona de casa diligente tentei passar à fase das limpezas e arrumações para que tudo estivesse pronto antes das primeiras chuvas. Das várias memórias que vou encostando na estante de tábuas de madeira e tijolos das obras, esta noite terá sempre um lugar destacado. Um lugar para recordar com conforto e alegria quando me estiver quase a convencer que neste imenso e infinito deserto não existe sequer uma árvore de Josué para umas tréguas de sombra.

 

Artur

ADORAÇÃO AO SOL - II



quarta-feira, 3 de julho de 2013

M de MARIA

Do swap ao swamp é um pequeno salto, questão apenas de uma letrinha singela.

130 ANOS DEPOIS

                                                           Franz Kafka - 3 julho 1883

ATLANTIS



Uma vez percebidas as portas para a Atlântida não há vontade nenhuma de voltar para trás, somos abraçados pela recordação de um tempo confortável, por um ambiente harmonioso quase perfeito, pela voz que confirma à memória essa lembrança que apesar de nunca se conseguir ver nem por isso se esqueceu.

Aos meus pés o mar e no olhar a linha do horizonte. O barco ao longe parece sempre parado mas no entanto move-se como a Terra, como o Sol, como tudo, enfim. Tudo está de passagem com breves paragens em algumas estações, recordações, regresso à ilha da minha infância embalado em companhia familiar, tento repetir comportamentos, desembaraçar o corpo, comungar com a Natureza. Saltos do cais ao pôr-do-sol com a maré-cheia, muros para trepar com métodos de osga, corridas na areia, jogatanas de bola com os sobrinhos. Um barco que se mantém imóvel no horizonte mas que afinal nunca parou. Os ossos protestam rangendo humidades, desculpando-se com as artroses, os músculos olham para ti com alguma admiração (“ mas pensas que isto é algum elástico?”) e vingam-se com cãibras fugidias, os bofes começam a bufar muito mais depressa, o coração encosta a bicicleta e fala sozinho a bater ao ritmo que lhe apetece (“ já bati muita estrada, sim senhor…outros tempos, velocípede, outros tempos”) Tal como o barco que parece não andar, andando, também eu não lhes ligo, finjo que pertencem a outro corpo e deixo o meu único aliado (o cérebro) mergulhar comigo da ponte abaixo enquanto o Sol se enrosca vagaroso na manta do Oeste em variações de fogo alaranjado. Os filhos e os sobrinhos são homens feitos, falam de miúdas, cerveja, bandas de rock. Viram-se para os “velhos” quando querem ter uma certeza acerca do tempo em que ainda não tinham cruzado os portões da Atlântida para o lado de cá. Confirmam, desenham sorrisos malandros, observam com a ingenuidade própria de quem começou a caminhar há pouco tempo. Há nisto tudo uma brisa refrescante de felicidade que esvoaça sobre as minhas memórias, as minhas células velhas que se reproduzem cada vez mais devagar. Tudo passa mesmo quando parece não passar, o barco está ali e daqui a bocado deixa de estar, muda de sítio, muito devagar, sobre o portal atlante. Há uma vontade enorme de não voltar para trás, de não regressar à falta de sentido, às ruas do absurdo palmilhadas todos os dias, às mágoas desnecessárias, à futilidade das obrigações e do sacrifício, aos desencontros e às charadas indecifráveis do coração. Olho outra vez para a ilha da minha infância, para as rugas da minha irmã, para as barbas do meu sobrinho mais velho e parece que me encostei à recordação de um tempo confortável, que vesti uma camisola harmoniosa, quase perfeita, um conforto que vem confirmar à memória essa lembrança que apesar de nunca se conseguir ver nem por isso se esqueceu. Não interessa a viagem mas o momento em que estamos, não interessa a paragem mas a continuidade do movimento, não interessa nada. As memórias espalham-se no areal como gaivotas ao fim do dia em busca de alimento. Basta um cachorro cheio de vida, uma criança a correr para debandarem em voo livre e desordenado em todas as direcções. O cão volta para o dono, a criança volta para casa e a praia fica deserta, aberta apenas aos beijos das ondas. E tudo desaparece como se nunca tivesse acontecido. Ás portas da Atlântida recordamos a casa de onde viemos e recusamos voltar atrás, em frente às recordações queremos ser o que fomos sabendo que nunca é possível inverter a direcção da linha do tempo. Que nada está parado mesmo quando parece não andar, que as gerações passam como as ondas, beijando o areal onde as memórias aterram ao fim do dia. Voltar a beber da garrafa das recordações não é o mesmo que regressar ao passado. Voltar a encontrar as gaivotas espalhadas no areal e correr até as dispersar é como quem pega na vassoura e vem apenas apagar o rasto que deixou. É explicar o caminho àqueles que nos seguem. Uma vez percebidas as portas para a Atlântida, uma vez encontrado o caminho de regresso a casa, nunca se volta para trás. Respeita-se a lei do movimento contínuo e dá-se início ao caminho. De repente o barco que passava devagar na linha do horizonte, as gaivotas que bicavam o chão da praia, a vida de todos os dias, as mágoas e as charadas indecifráveis do coração, tudo desapareceu, tudo se desfez pacificamente ao sabor dos beijos que as ondas desenham na humidade do areal. Porque nunca houve princípio nem fim mas um perpétuo continuar.

 

Artur