Senhor Belmiro de Azevedo,
Começo por lhe apresentar os meus respeitosos
cumprimentos.
Quero por meio desta carta aberta agradecer-lhe a sua
intervenção no Clube de Pensadores, essa instituição que tanto tem feito pelo
esclarecimento público daquilo que figuras proeminentes das mais variadas áreas
deste país são capazes, tanto em pensamentos, palavras, actos ou canções.
Por vezes o resultado saído dessas sessões públicas não
será provavelmente o desejado nem pelos organizadores, nem pelos convidados, mas sem dúvida são
extremamente reveladores. Mais até do que algum programa televisivo de
entrevistas (discutivelmente) bem estruturadas, de tal forma que acabam por não
acrescentar nada de novo ao que já se sabia – a não ser talvez ruído.
No Clube dos Pensadores não.
Talvez por quem expõe as suas ideias achar que está mais
à vontade, pelo facto de a plateia ser menor - o que é certo, é que de alguma
forma o que para lá é dito nesses encontros, acaba por ter repercussões na
sociedade e nas próprias pessoas que por lá vão intervindo a convite desse
grupo de filósofos.
Confesso que apesar de sinceramente ter gostado de saber
das suas ideias fiquei desiludido com o seu modo de ver as coisas. Nomeadamente
na revelação de advogar a baixa de salários para ajudar a economia portuguesa.
Pois é, senhor Belmiro de Azevedo, não concordo mesmo nada
consigo.
Primeiro, porque que desde que há anos sou cliente
Modelo/Continente/Worten, sempre fui muito bem atendido pelas pessoas que lá
trabalham. Como agora modernamente se chamam: seus colaboradores. Porque ao
saber os ordenados que muitos deles auferem, alguns com cursos superiores mas
sem colocação para a especialidade para a qual andaram a estudar durante largos
anos, são claramente abaixo daquilo que mereceriam receber. Apesar disso e
estarem numa função para a qual foram empurrados pela força das circunstâncias
(a principal, terem nascido em Portugal), evidentemente abaixo das suas
competências e formação, o fazem com elevado profissionalismo, eficiência e
simpatia.
Segundo, porque é graças ao estado das coisas a que
chegámos como por exemplo a precaridade do emprego e a elevada taxa de
desemprego que diariamente bate recordes, que o senhor Belmiro tem
possibilidade de lhes pagar o que paga, tendo uma infindável fila de pessoas
desesperadas para trabalhar e substituir os mais desiludidos a troco de um
salário que está uns trocos acima do mínimo.
Terceiro, tendo o senhor Belmiro recorrentemente ao longo
dos anos figurado na lista das maiores fortunas da Forbes, não terá noção do
que será viver na incerteza da precaridade, ou com um orçamento familiar à
justa para não passar fome, ou nalguns casos nem isso. Por ter o estatuto de um
dos mais ricos deste país até me parece mal que tenha achado que será à custa
dos baixos salários que esta nação avançará rumo ao desafogo económico.
Quarto, porque ao saber da relação das grandes
superfícies com os fornecedores e ainda mais com os produtores agrícolas, a
mesma não me parece justa. Para os agricultores, claro, aqueles que se esforçam
fisicamente, assumindo eles todos os riscos de eventuais prejuízos na produção
dos produtos e daqueles que se possam estragar até à sua venda. Isto já para
não referir prazos de pagamentos.
Quinto, porque estranhamente, o senhor Belmiro, que
considero pessoa informada ou com fácil acesso à informação, parece desconhecer
que os países onde as pessoas vivem melhor e onde o Índice de Desenvolvimento
Humano são mais elevados, são exactamente aqueles onde os ordenados pela sua
componente, dignificam quem trabalha e por isso proporcionam uma melhor
qualidade de vida. Terá certamente o senhor Belmiro ouvido falar destes:
Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Luxemburgo. Não fazem parte de uma
galáxia distante. São países até nem por isso muito longínquos. São europeus,
mas onde o índice de corrupção e os interesses financeiros mais obscuros são
praticamente inexistentes. Países onde o estado social, por cá incomportável, é
lá possível com uma carga fiscal e tributária presentemente idêntica à nossa. E
por cá aguentamos, aguentamos, um estado de coisas que entretanto se torna
impossível de aguentar porque não augura nada de bom e todos os sacrifícios que
são pedidos ao português comum, desaguam num buraco negro que continua a
alimentar um défice cada vez maior.
Sexto, porque todo o ser humano tem o direito de ser
respeitado. Muito mais por aquele para quem trabalha.
Por estas e mais algumas razões que não vou enumerar,
para não tornar esta missiva demasiado extensa, junto envio-lhe os meus
cartõezitos Modelo que me permitiram “poupar” até há uns meses, quando deixei
de ir aos estabelecimentos da Sonae, a quantia de mais de €2.000,00. Leva-me
isto por outro lado a pensar em quanto terá o senhor ganho com as minhas
compras nas suas grandes superfícies, enquanto eu poupava.
Envio-lhe também os cupõezitos dos descontos de 10%
enviados para mim na semana passada pelo correio, e outros específicos para
produtos que acham os serviços comerciais do Continente me podem dar jeito para
os próximos 2 meses.
Não os quero mais, muito obrigado.
Fica aqui um ponto final ás minhas compras nas suas
grandes superfícies, e nas empresas do Grupo Sonae.
Peço-lhe humildemente desculpa, mas sou assim. Um individuo que acha
que a cidadania não se faz apenas de 4 em 4 anos nas urnas, até porque também
deixei de acreditar nesse mecanismo que só funciona em Democracia plena que não
é de todo a realidade vivida em Portugal, mas com “Pequenas Acções Quotidianas”
que o mais anónimo português pode tomar se tiver noção que a sua escolha faz a
diferença. As minhas “PAQ’s” surgiram um pouco antes dos PEC’s do governo
Sócrates e foram-se sucedendo até a um ritmo maior. Só que em vez de serem substituídos
pela seguinte, foram-se consolidando e surgindo uma nova “PAQ” sempre que as
circunstâncias o exigem ou me acordo para coisas que não acho bem. É bom ter
voz mais do que apenas de 4 em 4 anos, sabe? Não haverão muitos como eu, mas a palavra e a razão espalham-se e talvez daqui a um ano ou dois sejamos uns 10 ou 20 a fazer estas "PAQ's".
Fique o senhor Belmiro descansado porque tal como esta minha
“Pequena Acção Quotidiana”, já tenho tomado outras iguais em relação a outras
situações. Não é de todo exclusiva em relação ao Grupo Sonae. É apenas e só
isso, mais uma tomada de posição para aquilo que acredito, pode fazer a
diferença para um Portugal melhor. Têm-se tornado uma colecção pessoal que muito estimo.
Somos nós todos, o povo, que pode mudar mentalidades e isso
tem de começar por cada um de nós. Eu por mim, tento fazer a minha parte,
fazendo as minhas escolhas de acordo com aquilo que acho acertado e penalizando
da mesma forma as pessoas, instituições, princípios que estejam em total
oposição ao que acho certo.
Pelo estado das coisas a que chegámos, eu como tantos outros
pais portugueses, vou-me lentamente mentalizando para a ida da minha filha para
longe da minha família, para fora deste país que se tem tornado demasiado pequenino
e asfixiante, quando chegar a hora de ela começar a trabalhar, depois ou talvez
mesmo antes do final do curso universitário que está a frequentar. Não tenho
ilusões que ela por cá tenha futuro, a não ser que queira eventualmente ser por exemplo, caixa de supermercado desde que seja essa a sua vocação. Só quero que ela faça
na vida o que mais gosta e se for isso não tenho qualquer problema em aceitá-lo
porque é um trabalho tão digno como qualquer outro.
Aconselhar-me-ia o meu bom senso remeter-me simplesmente ao
recato, se estivesse no lugar do senhor Belmiro, ou dos senhores Fernando Ulrich,
Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal, Soares dos Santos, e outros que gostam de
emitir opiniões sobre o estado das coisas em Portugal, estando numa posição confortável
em relação aos demais. Eventualmente e por disponibilidade económica e porque
podia, a prestar uma ajuda efectiva aos seus “colaboradores” através de um
aumento de vencimentos, contribuindo assim para contrariar esta espiral
recessiva que nos conduz a um buraco negro sorvedor de pessoas e valores (e não falo dos económicos).
Não será certamente através das Missões Sorriso que
apenas servem para o supermercado ampliar as suas margens de lucro pela venda
dos produtos que pessoas bem-intencionadas adquirem para aderir a essas
iniciativas. Chamo a isto, caridade com o dinheiro dos outros, já que em
relação a quem a implementou basta-lhe vender os produtos com a respectiva
margem. O estado, claro, também agradece – sempre são mais uns euritos em IVA.
E os media efusivamente ampliam os resultados, naquilo que friamente para mim
não passa de acção de marketing.
Apesar de a
felicidade pura não depender do dinheiro, o que cada um consegue através do seu
salário tem de ser dignificante. A felicidade vem de dentro e da capacidade de
cada um em se maravilhar com as coisas mais simples. Mas essa é uma
capacidade inata. Ou se tem quando se nasce, ou nunca será compreendida por
quem a não tem, numa clara oposição de uma saudável ambição pessoal à mais
aviltante e destruidora ganância.
Lamento por tudo isto a sua opinião em relação ao momento
económico e social que Portugal atravessa mas que no entanto respeito.
Respeito, mas não compactuo.
Seu ex-cliente.
Hélder Martins