quarta-feira, 6 de março de 2013

UMA PASSAGEM PELO OESTE

Exactamente quatro anos antes do dia da implantação da República em Portugal, um bébé nascia filho de João Nobre e Albertina Nery, numa pequena aldeia rodeada por terrenos baldios, poucos quilómetros a norte das Caldas da Rainha.

Vinha esta criança a uma família de camponeses tão pobres, que até o apelido tinha sido dado ao pai de João por ter sido impedido de um sargento Nobre, compondo-lhe assim o nome de nascimento.

Evaristo, o bébé, far-se-ia criança e ao contrário de muitos da sua idade enquanto ajudava os pais na agricultura, ainda ia à escola onde aprenderia a ler e a escrever.

Sopas de urtigas ou de cardos eram refeições comuns nos seus primeiros anos, porque o que os pais pagavam para poderem trabalhar nas courelas dos rendeiros era demasiado, pouco sobrando para terem algo mais para comer. Também não se podia dizer que os baldios fossem terrenos férteis, daí que todo aquele trabalho, por ser o único disponível para aquela população, tivesse de ser suportado como forma de subsistência ou de sobrevivência.

Os tempos eram muito difíceis e a expectativa que aquelas populações rurais tinham em ver a sua qualidade de vida melhorar, ia-se gorando à medida que a esperança numa mudança positiva em resultado do derrube da monarquia, ia ficando mais longínqua.

Evaristo crescia assim e tornava-se rapaz, com alguma vantagem sobre os da mesma idade, pelas letras aprendidas até à terceira classe. Veria chegar os combatentes da Grande Guerra, os que se tinham marcado no corpo e na alma na Batalha de La Lys. Voltavam aqueles que tinham conseguido sobreviver, tuberculosos, gaseados, estropiados, pagando desta forma a ousadia de terem toureado a morte. Ironicamente esse infortúnio dos outros lembrava-o que havia mais terra do que aquela que os seus olhos conheciam. Sonhava com melhores dias enquanto se embeiçava por Angelina com quem viria a casar ainda adolescente. 
Quatro filhos depois e com a tropa feita aos 23 anos, frustrado por tanta miséria piorada pela crise do final da década de 20, decide partir para França. Consegue um contrato com o salário prometido de 23,10 francos diários e um visto de trabalho passado pelo consulado de Bordéus a 18 de Setembro de 1930. Sem perder tempo consegue juntar quinhentos escudos, uma pequena fortuna naquele tempo, para pagar a 24 de Setembro a “Taxa de Licença” ao Regimento de Infantaria nº5, e assim ter autorização para se ausentar do país. Paga ainda mais 136$80 pelo passaporte de emigrante a 3 de Outubro e ficaria pronto para embarcar numa aventura de três anos.
Deixando a família para trás, parte para França onde chega e é vacinado a 8 de Outubro de 1930. Começa a trabalhar a 10 de Outubro nas minas de carvão coque da Mines & Usines de Decazeville, passando depois para uma das fábricas metalúrgicas, até 2 de Fevereiro de 1931. Tem um breve trabalho nos caminhos de ferro na empresa Vincenzini Dario - Ingénieur, sediada em Rouen, e depois passa então no mesmo ofício de “carrier” para a empresa Gagneraud Père & Fils, onde estará nas obras do caminho-de-ferro na zona de Poitiers, que seria mais tarde destruído pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, a 13 de Junho de 1944.
Três anos longe que vão trazendo mais saudade da família deixada em Portugal. Ainda contacta o consulado português em Bordéus, para saber como e quanto custaria trazê-los para si e para um outro mundo, onde trabalhar compensava monetariamente. No entanto depois de uma resposta do consulado de 17 de Março, conclui que isso seria muito complicado e caro e decide regressar a Portugal, saindo de França um mês mais tarde, a 23 de Abril de 1933, deixando todas as portas abertas para regressar com a família. Não voltaria.
Amealhou nesse espaço de tempo, o suficiente arrendar uma grande propriedade com casa, que anos mais tarde acabaria por comprar. Estabeleceu-se em negócios de distribuição de lenha, adubos, vinhos e comprou ainda a taberna da aldeia, misto de mercearia, onde mais tarde haveria o primeiro telefone público em quilómetros em redor.

Tinha assim arranjado forma, de encetar uma vida melhor para ele e para os quatro filhos que entretanto trabalhariam nas terras e negócios do pai. Depois do regresso dele de França, Evaristo e Angelina ainda teriam mais três.

Habituou-se Angelina nesses três anos sem o marido, a ser a matriarca protectora do clã. Não sendo uma mulher corpulenta, gostava de largar foguetes e dar tiros, compensando com o estardalhaço, a falta de tamanho. Uma tesa mulher do oeste selvagem, dedicada à sua prole e pronta a dar dois tiros para o ar, sempre que sentia algo estranho, sozinha com os filhos na casa isolada plantada no meio da propriedade de trinta hectares. Certa noite em que os cães não se calavam e com uma arma nova, deserta para arranjar pretexto para a experimentar, depressa se pôs porta fora, acabando de premir o gatilho de pernas para o ar e com as costas pregadas ao chão. A arma marcara-a no peito e no orgulho. Naquela noite perdeu esse hábito, mas também por essa altura já todos lhe conheciam bem a fibra.
Prosperava Evaristo e num laivo de sorte quando a vida já lhe sorria, haveria de ganhar em 1935 a lotaria num grupo de três amigos, calhando-lhe cinco contos de réis. Levou-o este bafo de Fortuna, a outro nível no jogo da vida. Mais depressa do que um raio a notícia se espalhou, e logo apareceram alguns abutres para depenicar o que pudessem, convencendo-o a entrar na sociedade da Companhia de Vinhos do Oeste, através do investimento na compra de uma camionete para transporte de vinhos tão necessária à sociedade, conferindo-lhe assim o estatuto de respeitado e conhecido empresário das Caldas da Rainha. No entanto, seria uma sociedade onde ele entraria com dinheiro num fluxo de sentido único, tornando-se talvez no único erro da sua vida. Mesmo assim bem melhor do que os outros dois, a quem os cinco contos se esfumariam sem história nem proveito duradouro.

Das memórias dos negócios de Evaristo, contaria ele de uma vez em que já altas horas numa noite de lua cheia, voltava de bicicleta da Nazaré depois de ter recebido um grande pagamento em dinheiro. Decorridos poucos quilómetros, dois vultos saíram-lhe ao caminho numa ponte estreita sobre o rio Alcôa, acercando-se lentamente e perguntando-lhe em jeito de não o afugentarem, qual era o caminho para a Nazaré. Estacaram a aproximação pelo reflexo frio do luar no metal reluzente da arma que trazia consigo, apontando com ela o caminho para a Nazaré para um lado, o de Alfeizerão para o outro, e para o inferno se eles se atrevessem. Não se atreveram e mais depressa desapareceram no breu.

Os afazeres estendiam-se a todos os concelhos vizinhos, e um dia estava ele no escritório da taberna a atender um cliente que tinha a peculiar alcunha de “Sem-Cú”, quando um dos filhos os interrompeu a anunciar a chegada de outro de cliente da localidade de Cortém. O primeiro percebeu outra coisa, num assomo revoltado por ter entendido que o rapazola tinha provocadoramente anunciado ao pai que “O senhor de “Cú-Tem” está ali fora à sua espera!...”, gerando-se assim uma grande confusão. Acalmaram-se os ânimos explicada a situação, depois de uns copos de vintém e de algumas gargalhadas.

Evaristo, sem ligações ou cargos políticos, servir-se-ia da sua influência e reputação respeitada na região, para ser o principal empreendedor no asfaltamento da única estrada que ligava a aldeia ás Caldas da Rainha, até aí um caminho quase intransitável de terra batida e amplas crateras, bem como pela electrificação de toda aquela área, ainda antes do 25 de Abril de 1974. A festa da inauguração das duas inovações foi no armazém de vinhos que possuía, contiguo à taberna, e que já servia volta e meia para os bailaricos organizados pelos filhos, ao som de uma grafonola e discos em cerâmica com polkas e valsas, trazendo assim um pouco de animação a gentes que para além do duro trabalho, de uma côdea e de um copo de vinho, pouco mais tinham que os distraísse e alegrasse. O progresso era agora mais fácil, alterando significativamente a qualidade de vida daquela comunidade.

Teriam Evaristo e Angelina oportunidade de ver a família crescer em quinze netos e mais bisnetos, comemorando as bodas de ouro, vivendo a seguir a esse marco ainda quase por mais duas décadas com as alegrias e grandes desgostos que temperam a vida, não esperando muito ele lá do outro lado por ela.


Hélder


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