sexta-feira, 20 de julho de 2012

PANIC ON A WEIRD SUMMER DAY



Naqueles tempos a minha vida era uma incógnita absoluta, sem respostas fáceis, sem sombras de perspectivas nem silhuetas nítidas, em suma, nada a que me pudesse agarrar com um pouco de eternidade. Estava em Londres há três meses, trabalhava num “pub” e vivia numa daquelas casas típicas de postalinho, num quarto, dividindo a casa de banho com mais três quartos, numa rua simpática entre Cromwell Road e Queens Gate Gardens, no bairro de Kesington. Comigo viviam o Bruce e o António, que trabalhavam no mesmo lugar que eu, a irmã do Bruce e um gajo suíço que tocava baixo nos corredores do metro. Era uma manhã de Sábado e tinha ido comprar o jornal. Quando voltei vi um gajo a rondar a nossa porta com ar suspeito. Dirigi-me a ele, perguntei se queria alguma coisa. Perguntou-me se morava ali, respondi que sim. Depois começou a falar num gajo paquistanês que lhe devia dinheiro e se ele não morava ali. Respondi que não, que ali não morava ninguém que correspondesse aquela discrição. Começou a insistir que queria entrar e certificar-se por si próprio. De início resisti mas tive rapidamente que mudar de estratégia. O tipo dizia que se não o deixasse entrar, acabaria por voltar, e desta vez com a policia da emigração. Naquela época, tínhamos acabado de entrar na comunidade europeia, mas a livre circulação de pessoas ainda não estava completamente liberada em Inglaterra. Eu, por exemplo, tinha entrado com um visto de turista para seis meses, não podia trabalhar. Por outro lado, o António era desertor dos fuzileiros. Se a policia o apanhasse recambiava-o logo para a “terrinha” e, assim que chegasse, o destino dele seria o presídio militar. Aquele tipo não podia voltar ali com nenhuma espécie de policia. Mudei de ideia, disse-lhe para entrar, para confirmar pelos seus próprios meios. Lá dentro, alguma coisa me haveria de ocorrer. Entrámos para o pequeno hall, fechei a porta e avaliei-o. Era ligeiramente mais alto que eu, embora muito mais magro. Tinha um aspecto manhoso, cabelo rapado, vestia um blusão surrado de cabedal e umas “jeans” velhas onde, num dos bolsos de trás espreitava o cabo preto de uma navalha. Na altura os nazis da National Front eram um grupo bastante activo, empenhado em dar caça a emigrantes. O António tinha dormido fora, o Bernard já tinha saído para o metro. Só lá estava eu, o Bruce e a irmã dele. O cheiro a incenso denunciava que ela já tinha acordado e dado início às suas orações diárias ao senhor buda. Seguia-se uma tigela de cereais e uma caminhada em Queens Gate Gardens. Subimos até ao meu quarto no primeiro andar. Esquecido sobre um dos degraus da escada estava um prato de bateria deixado para trás por algum amigo do Bernard. O outro não dava sinais de se querer ir embora, não parava de fazer perguntas, de onde é que eu era, se o de baixo não era australiano, etc. Andava de certeza atrás de qualquer coisa. Ou dinheiro, ou droga ou de reconhecimento de um lugar onde voltaria com os amigos para a caça. Foi então que me ocorreu uma saída. Convidei o desconhecido a ir lá abaixo ao quintal e beber um chá frio, para estarmos mais à vontade. Concordou. Deixei-o ir à minha frente. A meio das escadas agarrei no prato da bateria e continuei. Abri a porta do quintal e deixei-o passar. Depois, assim que fechei a porta fiz meia volta, alcei o braço e acertei-lhe com o prato em cheio na tromba. Ele nem teve tempo de perceber o que lhe tinha acontecido. Serpentinas vermelhas começavam a esvoaçar-lhe do nariz. Dei-lhe mais duas cacetadas para ter a certeza que adormecia por algum tempo. O Bruce chegou logo a seguir. Contei-lhe a história em três frases. Agarrámos nele e viemos para a rua das traseiras. Deixámo-lo deitado entre dois caixotes de lixo. Quando voltámos para casa tivemos que pensar numa história para fechar aquele episódio desagradável. Eu ia-me embora pelo menos até as coisas acalmarem, era o único que ele conhecia. Encontrávamo-nos mais tarde no “Pub”, que ficava do outro lado da cidade. Domingo ao fim da tarde. Ele logo me diria em que é que paravam as modas, se poderia regressar para casa ou não. Entretanto tinha que arranjar lugar para dormir. Se não telefonasse até à hora do jantar era porque estava resolvido. Agora tinha que me pôr a andar dali para fora. Ele ficaria encarregue de um telefonema anónimo para a policia a dizer que estava um homem caído nas traseiras da rua tal. Deu-me dois charros para o caminho. Abraçámo-nos e fui à minha vida. Para trás o rádio tocava musica dos “Smith”: 



                     Panic in the streets of London

                     Panic in the streets of Birmingham

                     I wonder to myself

                     Will life be sane again?



O resto da manhã e o princípio da tarde foi percorrido sem rumo pelas eternas linhas do Metro londrino, sem destino aparente. Era Verão e estava um dia quente. Voltei à superfície em Wembley Park e dirigi-me a um “pub” à procura de ar condicionado e de uma “pint” de cerveja. Entrei num ambiente acolhedor de barulhento. Na televisão um jogo de futebol animava as hostes. Pouco depois de me sentar entrou uma mulher sozinha, amparada por duas canadianas. Não tinha uma perna e exibia o coto por baixo da minissaia de ganga. Mandei vir outra cerveja e não consegui evitar olhar para a ausência do membro dela. Era loura, olhos azuis, cabelo curtinho muito leve a esvoaçar sem pressa ao sabor do ar condicionado. Ela percebeu que eu estava a olhar. Interpelou-me após um longo golo na sua bebida. – Para onde é que estás a olhar? – Fiquei sem resposta pronta, meio embaraçado. – Era para aqui que estavas a olhar? – apontava para o coto. – Era… - disse. – Queres mexer? – Olhei-a nos olhos sem desviar o olhar – Pode ser, porque não. – Levantei-me, dirigi-me a ela e estiquei o braço. A sensação era como estar a sentir uma almofada cheia de rugas, um espaço muito suave e frágil ao mesmo tempo. – Então, qual é a sensação? – continuou ela naquele registo de raiva e desafio. – É estranha. Não se parece com nada que tenha tocado anteriormente. Queres ir dar uma volta comigo? Prometo que não vou andar depressa. – Ela soltou uma gargalhada e chamou-me esquisito. Respondi-lhe que tudo naquele Verão na minha vida era esquisito. Bebemos mais uns copos e saímos. Comprámos comida na rua e fomos jantar a casa dela. Chamava-se Irene, trabalhava como secretária numa empresa de imobiliário e tinha perdido a perna num acidente de mota com o namorado. Ele tinha morrido. O que lhe faltava em termos de perna, sobrava e excedia as expectativas no resto do corpo. Ao fim de uma hora na cama já não me conseguia lembrar de nenhum defeito que a Irene pudesse ter. Passámos aquela noite juntos e assim ficámos todo o dia de Domingo. Ao fim da tarde disse-lhe que tinha que ir trabalhar e perguntei se queria ir comigo. Aceitou. Metemo-nos no metro e acabei por a apresentar ao Bruce e ao António. Ficou lá até fecharmos e pela noite fora a ouvir musica, a cantar e a beber cerveja. O gajo do dia anterior tinha desaparecido sem deixar rasto. Contaram-lhe a minha aventura naquele dia. Ela olhava para mim incrédula: “You are a crazy fuck, aren’t you?” Eu respondia meio envergonhado: “I think I´m a crazy fart, thats all?” O António emprestou-me a mota dele para a levar a casa. Dormi lá outra vez nessa noite. A Irene voltou ao “pub” mais duas ou três vezes e nunca mais a voltei a ver. Sabíamos que havia ali qualquer coisa. Qualquer coisa que não era suficiente para manter uma relação duradoura. Mesmo assim, ficámos amigos. A minha vida continuava uma espécie de incógnita permanente, sem esboços de futuro, sem nada a que me pudesse agarrar. Era como se estivesse amputado de respostas. Aqueles dias com a Irene, no entanto, serviram para me dar um pouco de paz e tranquilidade. Uma tranquilidade que já não sentia há muito, muito tempo. No rádio os Smiths cantavam o pânico. Na minha cabeça, era apenas mais uma canção daquele estranho Verão na Londres dos anos 80….

                       Burn down the disco

                       Hang the blessed DJ

                       Because the music they constantly play

                       It says nothing to me about my life





Artur




3 comentários:

Clarice disse...

Aquela parte do outro levar com o prato na cabeça... deixou-me sem ar, ainda achei que ele se ia virar de repente e a coisa ia acabar mal... já com a Irene, pressenti que algo de bom iria acontecer...

Ganda filme:)

A.Teixeira disse...

Cena maluca a do prato como arma de arremesso...

Artur Guilherme Carvalho disse...

Vocês gostam é de pratos na focinheira dos facínoras. Obrigado pelos comments Clarice e António.