quinta-feira, 5 de abril de 2012

ALBERT, SAINT ALBERT




Dedicado à Teresa Tainha, leitora benevolente, atenta, fiel e crítica, no dia do seu aniversário.


No dia 4 de Janeiro de 1960, pelas 13 h e 55 m, na estrada que liga Sens a Paris, morria Albert Camus num acidente de automóvel conduzido pelo editor Gaston Gallimard. Passados todos estes anos, todos estes acontecimentos que ele não viveu, um movimento natural leva-me a perguntar: que teria ele pensado ? ou melhor, o que pensa ele ? Na verdade, não o sei já ?  Os factos repetem-se com a mecânica de uma máquina duplicadora e Camus teria dado, antes da sua morte, as respostas que o nosso presente exige. É neste ponto que a História, por vezes, parece obedecer à sua visão. Os Grandes Inquisidores invadiram Praga; os franceses torturaram e mataram indiscriminadamente na Argélia; no Vietname os homens arderam nas fogueiras acesas por outros homens, pelos políticos e religiosos que Albert Camus denunciou; a sociedade capitalista (de mercado, dizem eles) suscita a revolta metafísica que ele previu; o dogma marxista colapsou definitivamente; a Burguesia de Função ergue o domínio que ele decompôs nos seus mais ínfimos mecanismos; os terroristas islâmicos deitaram abaixo as Torres Gémeas; e não é que até os regionalismos e a ressurgência um pouco por todo o lado, até na sua amada França (veja-se o caso dos assassinatos de Toulouse) das etnias e do fanatismo religioso encontram a sua definição naquilo que escreveu sobre a verdadeira unidade, baseada no respeito e não no apagar das diferenças ?

Escutemos o que ele diz sobre o nosso tempo. E reconheçamos que poucos autores obtiveram na difícil passagem que se seguiu à sua morte esta continuidade, sem um único fio a romper-se, um só instante de esquecimento.

Podemos dizer que Camus não inventou nada, e é verdade, uma verdade sumária e redutora. Como escritor e filósofo descende em linha recta dos Gregos, de Nietzsche, Dostoievski, Unamuno (Pascal e Molière, acrescentaria ele); entre os contemporâneos, Gide, Malraux, Montherlant, sendo essas influências bem menores. Todos, no entanto, foram ultrapassados, num golpe de asa. Em todo o caso, Intermediários, seria a palavra mais justa. De facto, a obra de Albert Camus não ignora nenhuma paísagem, preocupando-se apenas com as terras essenciais, sobrevoando aquelas que o não são, sem nelas pousar.Para quem contempla as poderosas marés do Eterno Retorno, as pequenas vagas tornam-se insuportáveis. Ora, é de pequenas vagas que vive uma literatura de época. O olhar de Camus dirige-se para os cumes, talvez inacessíveis: a literatura de puro divertimento nunca o interessou, nem sequer o estilo, embora o possuísse num grau de clareza quase tão insuportável como olhar o Sol de frente.

Foi um moralista, como a maior parte dos escritores franceses. Como eles, foi-lhe impossível escapar a séculos de moral e racionalismo cristãos. Herdou a Grécia e o Cristianismo e aceitou a sua herança. Foi sempre fiel à terra, às obras dos homens, à dimensão humana aliada às forças materiais, lembrando constantemente que a justiça é, antes de mais, um equilíbrio pessoal incessantemente ameaçado, o esforço contínuo de uma dupla visão ("O Avesso e o Direito").

Vivemos num tempo em que a tecnocracia moral e a burguesia material sustituíram o tipo de moral que Camus professava, sem que eu deixe de pensar que o burguês de hoje, o tecnocrata dos becos políticos e o especialista das eficácias fragmentárias valem infinitamente menos que esse moralista (quase, quase um santo), morto em 4 de Janeiro de 1960. Nesse dia levava uma pasta que continha a obra inacabada que viria a ser publicada com o título "O Primeiro Homem". Aí se pressente a dureza do caminho que percorreu, do bairro popular de Belcourt, em Argel,ao Prémio Nobel da Literatura, passando por todas as glorificações que consagraram o homem, o combatente, o escritor e o filósofo. No entanto, o mais comovente dessa obra, o mais profundo, o mais trágico e sublime encontra-se nas páginas em que descreve o encontro com a campa do pai, morto em 1914 na batalha do Marne (viu pela primeira vez a França e morreu), tinha Camus um ano de idade, descobrindo ser "o primeiro homem", e aquelas outras em que o adolescente penetra pela reflexão e pelos estudos na grande explicação das coisas e observa a mãe, calma, profunda, impenetrável e silenciosa como o mar (mère/mer, mãe/mar, Camus aproximará rapidamente essas duas palavras) que, em toda a eternidade de miséria e aquiescência vive na intimidade das coisas.

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