sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A VALSA DA CONVENIÊNCIA

(in “Sermão aos Matraquilhos”)

A valsa é dançada desta maneira. Uma noite convidam-te para jantar, tudo é sorrisos e palmadinhas nas costas, uma parada de salamaleques. A tua inteligência é louvada, as tuas capacidades enobrecidas, desenha-se nas frases a certeza de um futuro brilhante. Vão-te encaminhando para a mesa que está ricamente equipada com as mais finas iguarias, os melhores e os mais caros vinhos, sobre uma toalha de linho, imaculada. Alguém puxa uma cadeira, todos esperam para se sentar depois de ti. O mais antigo deles todos serve-te vinho. Fazem-se brindes por tudo e por nada. Aos presentes, à Vida, ao Futuro. Ao fim de alguns brindes, eis que surge o momento alto da noite. A travessa enorme surge fumegante vinda cozinha e é entregue ao tipo mais velho. Silêncio total e absoluto. Vai ter lugar o momento solene da noite. O mais antigo ergue a travessa acima da cabeça e volta a baixá-la. Repete o movimento três vezes, como num ritual. Faz-se um compasso de espera, todos suspendem a respiração com o olhar fixo em ti. A travessa é colocada à tua frente. Este é o grande momento. O TEU grande momento. Tens dois caminhos a seguir, duas hipóteses para escolher. Ou metes as mãos na travessa e te alambazas com as iguarias oferecidas, ou declinas o convite. Se começares a comer, acabaste de inaugurar uma vida promissora pelas cadeiras do Poder, visita guiada ao mobiliário da administração pública, desde a junta de freguesia até às cadeiras do ministério, passando pelos lugares da câmara municipal ou do parlamento. Assinarás o que te mandarem assinar, darás emprego a quem te mandarem empregar, limparás a porcaria que te mandarem limpar. Ganhas uma vida sem preocupações em troca do couro e da alma. Estás proibido de hesitar. Porque se o fizeres, se houver uma dúvida que seja, haverá sempre uma certeza à tua espera. Uma certeza convertida em memória, recordação, a fotografia do jantar em que disseste que sim. A tua figura no meio dos convivas, mãos esticadas para a frente, na direcção da comida.
Se, por outro lado, a tua resposta for negativa, se disseres que não te apetece jantar, que não tens fome, que não aceitas, nada muda. Aparentemente, nada muda. Os convivas entreolham-se com algum embaraço mas o anfitrião levanta-se e caminha na tua direcção. Chegado ao pé de ti, dá-te um abraço fraternal, um daqueles que será suficiente para manter o sorriso na cara dos outros. Acompanha-te até à porta e despede-se na maior das cordialidades, sempre ao dispor. Acenará ainda uma última vez do cimo da escadaria, vendo-te partir. Mas nunca mais o voltarás a ver. Deste grupo de “negacionistas”, há muito poucos. São considerados uma espécie rara entre o asceta e o louco. Ninguém lhes liga nem sequer quer saber o que dizem. Ninguém lhes quer mal desde que não voltem a interferir nos jantares nem nos assuntos que lá são tratados. Passam a viver neste estatuto de “não-existentes”, esquecidos da sociedade onde às vezes é possível saborear uma boa dose de consciência sem ser enlatada, uma boa dose de loucura a saber a Liberdade. Uma postura à prova de condicionamentos, restrições, dívidas, favores, submissões. Uma postura que sabe bem, alivia e não serve para nada.

Artur

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