domingo, 4 de dezembro de 2011

VISITANDO HEMINGWAY



Uma boa introdução é normalmente o prenúncio de um bom livro. Assim como uma boa jornada será a antecâmara de um bom encontro. E assim foi naquele dia em que, conduzindo durante largas milhas sobre a água, acabamos por chegar à morada, ao destino daquela longa caminhada. No ponto mais a Sul da América do Norte (Key West) estamos a 90 milhas (140Km) de Cuba. À volta só o mar e mais mar, oceano até enjoar.
Uma visita a um velho amigo não se pode confundir com nenhum acto simbólico ou religioso, mesmo que só nos tenhamos conhecido através dos seus livros.
O homem poderia mesmo receber-nos de duas maneiras. Ou com um cano de caçadeira apontado à cabeça: “Get the hell out of my property”; ou com uma garrafa de cognac na mão convidando para uma longa conversa sobre livros, caça, pesca, aventuras em geral, a Guerra Civil Espanhola, enquanto vários gatos passariam pela sala indiferentes às gargalhadas e aos pensamentos mais profundos.
Como nunca tive muito jeito para crente, e já não tenho idade para peregrino, o mais certo seria dizer-lhe que li “Paris é uma festa” com 18 anos e que desde então nunca mais parei de o ler. Que ele foi um dos autores mais influentes que me levaram a querer ser escritor (ou contador de histórias). Recordaria aquele célebre diálogo do homem que sai de uma igreja e é surpreendido por uma amiga que lhe pergunta o que é que ele esteve a fazer. “ A acender uma vela por todos aqueles que amo.” – responde . Ela então insiste: “Mas tu não acreditas…” Ele sorri. “Pois não.” Nessa altura dir-lhe-ia que tenho um grande amigo que faz o mesmo sempre que vai a Nova Iorque. Dirige-se à catedral de St. Patrick e acende uma vela por todos aqueles que ama. E também não acredita. Tal como eu não acredito em deuses para venerar nem dou à vida mais importância do que ela merece. Duas grandes lições que Hemingway nos deixou. Por isso não poderia aparecer na sua casa de joelhos a cantar hinos religiosos e a chamar-lhe pai de todos os escritores. Entrei nela como um homem, sobre os meus passos, e sentindo¬-me extremamente confortável com o bem-estar que se respirava em cada sala. Como se o dono da casa tivesse saído no dia anterior. Uma casa igual à sua forma de escrever: honesta e confortável. Uma casa com um jardim extraordinário e acolhedor, habitado pelos verdadeiros donos, os gatos. Cerca de 60 felinos descendentes dos seus gatos iniciais, que se passeiam pelo meio dos turistas, que brincam uns com os outros indiferentes a tudo, que entram e saem da casa como se nada fosse.

A piscina, o anexo onde se encontrava o escritório, o quarto, as casas de banho, tudo se perpetua sem uma perturbação na harmonia de uma habitação funcional. O tempo parou ou, simplesmente, a vida continuou indiferente muito para lá da morte ou da notoriedade. Qualquer coisa continua indiferente às regras da vida e do destino. A casa, o jardim, os gatos, tudo continua como se fosse uma festa.
Obrigado Hemingway. Um dia haveremos de nos encontrar…outra vez.

Artur

2 comentários:

Hélder disse...

Ok, caro Artur, eu sei que gostas de comentários curtos. Mas com assuntos destes, isso é impossível. Peço desculpa desde já.
Quando me pedem dicas sobre a Florida, Key West está sempre no Top5 - pela viagem, pela cidade, pelo ambiente descontraído que aí se vive, e por outras coisas que nos levariam à partida a duvidar estarmos numa cidade dos EUA. E uma ida a Key West implica uma visita à casa-museu de Ernest Hemingway, uma das personalidades mais inconformadas, irreverentes, inquietas e sábias, do século XX.
À entrada, somos recebidos por autênticos sósias de Hemingway, com igual gosto pela bebida, com ataques de tosse tabágica que lhes podem custar a ejecção de uns quantos brônquios, boca fora, enquanto partilham uma perspectiva da fabulosa vida de Hemingway, que vai muito para além de uma simples visita, a um local já de si fantástico.
Depois, são os gatos de seis dedos (sim, todos os gatos têm 6 dedos) herdeiros da casa, e que tomam a casa como legitimamente sua e como só um gato conseguiria tomar, afiando as unhas nos sofás onde visitante não se pode sentar, mas onde Hemingway se sentou, e que quando se finam, acabam no seu exclusivo cemitério nas traseiras. São também as histórias rocambolescas deste Homem, que enfrentou destemidamente as mulheres que fizeram parte da sua vida. Um dos episódios mais hilariantes, foi plantar um urinol verdadeiro do Joe's Sloppy Bar, daqueles com metro e meio de altura, colocando-o deitado no jardim como bebedouro - já que a mulher não o queria lá, ia trazendo de alguma maneira partes do seu local preferido para a sua própria casa...
O cêntimo cravado no chão, junto à piscina, testemunha de uma aposta com a sua mulher...
Ai se isto não fosse um comentário, Artur...
Abraço!
Ah!... Estou em Miami a escrever isto... ehehehehe

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Helder pelo teu complemento informativo. Desta forma fica completa a visita guiada à casa do Ernest, e mais apetecível o "bichinho" da vontade de lá ir para os leitores deste blog. Acho que vou pedir um subsídio ao estado da Florida. Abraço.
Artur