domingo, 31 de julho de 2011

CREDO
Acredito em todas as teorias da Conspiração, da mesma forma que acredito em todas as informações oficiais que nos são bombardeadas como um padrão, sem alterações, em todos os principais órgãos de informação. Acredito na histeria catastrófica das profecias de um e outro lado que, após a falha redundante de concretização, se retiram silenciosamente para o esquecimento como se nunca tivessem existido. Acredito que nos dois planos há um esforço enorme de controle das nossas vidas, para nos manter desinformados, nos manter afastados daquilo que realmente interessa. Acredito que a barreira mais difícil de transpor é a da necessidade de ser informado. Acredito que todos os dias nos apresentam necessidades que não temos para nos obrigar a adquirir o que não precisamos. Acredito que a melhor parte das histórias da propaganda e da conspiração é a ultima, na medida em que é aí que vemos quem saiu a lucrar. E, normalmente, é sempre o mesmo grupo, uma espécie de família faraónica que opera casamentos dentro do seu círculo, uma família a quem a chuva não molha, as catástrofes não chegam e o infortúnio nunca bate à porta. Acredito que, para satisfazer a gula sem fim desta família se multiplica e amplia o sofrimento da Humanidade, muito para alem do razoável, fabricando guerras, inventando crises, desequilibrando sociedades, alimentando os mais animalescos instintos de destruição. Acredito que todas as tentativas de libertação e emancipação da Humanidade acabaram por ser corroídas pela subversão dos seus valores ou esmagadas pela violência. Acredito que a carreira mais promissora que se pode ter é a de assistente dos faraós, na propaganda, no adormecimento da multidão, na parte financeira, na produção das leis, no exercício do poder. Acredito que não se pode ajudar a libertar quem não quer ser libertado. Porque o medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.

Artur

sexta-feira, 29 de julho de 2011

FADO DA TRINCHEIRA



Musica: António Melo

Letra: João Bastos e Felix Bermudes

Interpretação: Fernando Farinha (1928 - 1988). Fadista

quinta-feira, 28 de julho de 2011

6 Anos D'escrevinhices

6 anos d'escrevinhices, idade bonita e, para blogue, provecta. E, ainda que mais tempo tenha que leitores mantém-se útil e vivo e postante.
Há pouco remodelado viu reforçado o seu ar de caderno d'apontamentos, esquiços que por vezes se vertem em livros, artigos de jornal e no mais que seja possível.
Não s'esconde o desejo de maior audiência, de olhares atentos que apreciem e sugiram ou critiquem ou, tão-só, apontem a omnívora gralha... Porém, insiste-se em um estilo que alguns reputam difícil e embora haja reacção à infantilização da língua promovida pelos autores da moda há, também, livre & franca exploração da forma & fundo do que reste ainda dizer neste orbe saturado d'escritos.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O REGRESSO



(Imagens da cerimónia militar a três militares mortos em combate depois de transladados da Guiné, 2011. Autoria: António Carmo)

E um dia, finalmente, eles voltaram. Voltaram ao espaço onde nasceram e cresceram, voltaram para o pé da família, voltaram muito tempo depois de cumprida a sua obrigação imposta por quem não cumpriu a sua parte. A TAP e a Liga dos Combatentes organizaram o repatriamento de soldados mortos em combate várias décadas depois. Eram de famílias pobres que não podiam pagar a transladação dos seus restos mortais. Eles cumpriram a sua parte, a Pátria abandonou-os no anonimato da terra africana. A mesma Pátria que os foi buscar a casa e os obrigou a participar numa guerra em seu nome. A Pátria, muito rápida a recrutar e a incorporar nas suas fileiras para mandar combater; a Pátria, muito rápida a olhar para o lado e a esquecer os que combateram por ela. Se não fossem as famílias dos mortos e os camaradas vivos, esses seres incómodos que insistem em recordar o que se passou, ninguém quereria saber.
Mas não é de hoje nem de ontem. Já com os soldados da I Guerra tinha sido a mesma coisa. As guerras são recordações incómodas neste país. Servem enquanto duram os interesses de todos menos dos que as fazem, sacrificam os filhos que não se conseguem baldar, poupam os bem nascidos, os “espertos”, os com bons contactos. As histórias que haveria para contar sobre todos eles daria um livro quase infinito. Se mais lições não houver a retirar desta geração que vai desaparecendo com o passar do tempo, olhemos para os mais novos e relembremos um diálogo provável entre pai e filho.
- Roubaram-nos o futuro pai… à nossa geração.
- E a mim? Julgas que nos deram alguma coisa? Qual foi a geração a quem não roubaram o futuro? Conheces alguma?

Observemos o rosto de dois pais nas cerimónias do 10 de Junho no final da década de 60. Acabados de receber as medalhas em nome dos filhos mortos em combate, assistem ao toque de silêncio. Como homens, tentam engolir as lágrimas…mas não conseguem disfarçar o desespero da tristeza.

Da próxima vez (porque vai haver próxima vez, não haja dúvidas acerca disso), vai voltar a tocar a mesma musica. O discurso patriótico ou faccioso, todo o manual do absurdo saltará da caixa para convencer os mais novos que é preciso morrer. Mas só alguns, claro.
Da próxima vez, a Pátria estará a olhar para os mais novos e a cantar-lhes a mesma cantiga. Sejamos corajosos então, nesse momento.

Artur

terça-feira, 26 de julho de 2011

O HOMEM E A CIDADE


(Foto de Sofia P. Coelho)
O homem atravessava a cidade como que desligado da realidade, dando ocasionalmente alguma atenção à condução. O rádio do carro há muito que se encerrara num ruído monocórdico indecifrável, intraduzível. Talvez por conhecer aquele caminho desde criança, talvez por o ter percorrido milhares de vezes de todas as maneiras e feitios, talvez porque ultimamente se andava a sentir um misto de cansado com desinteressado, alheio ao que o rodeava, o certo é que o caminho passava por ele sem que desse por isso. De uma ponta à outra da cidade com a maior parte do percurso ao longo do rio, conhecia histórias em todas as esquinas, episódios em todos os passeios, espaços marcados pela memória associados a acontecimentos importantes que foi lendo e registando no registo dos outros. Naquele dia, no entanto, tudo era enfado, tudo era cansativo de perder a atenção por um segundo que fosse. E aquela era, sempre tinha sido, a sua cidade, a amante urbana mais amada de uma vida espalhada por cidades em todo o mundo. A “cidade branca”, que tinha observado através da objectiva de Alain Tanner, entre o Cais do Sodré e uma pensão em Santos sobre a doca, num tempo em que as máquinas eram todas à base de película… Não havia dúvidas sobre Lisboa. Uma cidade extraordinária, aberta sobre o estuário, uma cidade milenar, entreposto de culturas, palco de revoluções, porta de entrada e saída do continente. A cidade mil vezes cantada, filmada, encenada, celebrada, vivida, amada, magnificada. Hoje era ela, e não era. Tal como ele, que era ele, mas não era. Olhavam-se com algum incómodo, homem e cidade, como amantes pacíficos em vias de se separar, embora sem recriminações. Terminado o encanto, a paixão, o cimento que os juntava cada vez menos entusiasmados a ceder, a cama a fazer comichão nas costas, a clássica entrada para o discurso…para as frases clássicas aplicáveis na ocasião.
Não era ódio nem desamor o que o homem sentia. Olhando para a cúpula de uma igreja numa colina a cidade respondeu-lhe num sorriso branco e benevolente. Ajudou-o a clarificar o que sentia. E quando a brisa suave do rio o refrescava do calor daquele dia de Verão, percebeu. Aquela cidade não lhe pertencia, nunca lhe tinha pertencido. Nem ele a ela. Estiveram juntos de forma voluntária enquanto se amaram, mas até o amor termina, tal como a vida. Não deixava de fumar por lhe continuar a dar prazer, percebendo perfeitamente as regras ditadas pelo médico na última consulta. Preferia pensar nesse acto como uma abreviação à condenação eminente. Acabaria mais cedo, sem rancor nem tristeza. Por isso começava a afastar-se da cidade. Aquela cidade que nunca lhe pertenceu, aquela existência de que nunca foi dono, aquele tempo que não era propriedade de ninguém. Uma passagem, seria a designação mais adequada. Um “durante” com traços de eternidade para tornar a coisa mais atractiva, mais real. Um “durante” que se sente como absoluto enquanto vibração, enquanto se afirma e solidifica. Depois, o abrandar para a porta da saída. Nada de especial, apenas o ciclo da vida em movimento.
O homem deitou a beata do cigarro pela janela antes de fazer uma curva em aceleração, e insultar outro automobilista. Nessa noite, observando o luar pela janela do quarto, teve tempo de contemplar a cidade mais uma vez. E de lhe dizer adeus…

Artur

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A ARCA RUSSA



Alexander Sokurov

Rússia / Alemanha 2002

Tudo começa com a surpresa de um narrador/realizador que “cai de pára-quedas” no Museu Hermitage no início do séc. XVIII. Sendo invisível para todos os que o rodeiam, há no entanto alguém com quem consegue estabelecer contacto. Uma misteriosa personagem de um diplomata francês do séc. XIX que está com o mesmo problema. Não sabem como foram parar ali. Ambos vão então fazer uma pequena viagem através desse espaço que foi desde 1760 a principal residência oficial dos czares. E ao longo dessa viagem ver-se-ão confrontados com episódios históricos que tiveram ali lugar, fundindo Arte e História num percurso de quase três séculos. A construção de S. Petersburgo e o período de Pedro o Grande, a sempre difícil relação da Rússia com a Europa, as guerras, as revoluções, a vida da corte, e outros temas, são aqui debatidos ora em diálogo directo, ora na observação das próprias situações no registo de reconstituição.
Contando com mais de 3 mil actores e figurantes, um guarda-roupa sumptuoso e três orquestras ao vivo num dos maiores palácios do mundo, o filme demorou 3 meses a preparar e foi rodado num único dia, 23 de Dezembro de 2001. Se tudo isto não bastasse para descrever a singularidade e a espectacularidade do filme, acrescentemos que ao misturar uma narrativa inovadora com tecnologia de ponta e um estilo único de realização, Sokurov rodou todo este filme de 90 minutos sempre com o mesmo plano. Inscrito na História do Cinema, A ARCA RUSSA torna-se uma das primeiras obras-primas deste século.

Artur

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O FOGO

A porta bate, fechando-se sozinha e, apesar de saber que é a corrente de ar que a empurra não deixo de me assustar, de ser atacado por um sobressalto momentâneo. Sei que é a corrente de ar no instante imediatamente a seguir ao de me assustar. Vejo a casa mergulhar no silêncio do fim do dia, tranquila, digna, atravessando o tempo num passo seguro e elegante. Lá fora o bêbado de sempre ensaia o seu fado para o fim-de-semana. O bêbado das noites de estudo da minha Faculdade, deste tempo, o bêbado que já morreu, enfim, o homem que cantava fora de horas. A poltrona exibe a silhueta de uma figura patriarcal há muito desaparecida, os livros vão-se apertando na estante enquanto testemunhos de tempos diferentes, como passageiros em carruagem do metro na hora de ponta, (“com licença…desculpe…dê-me só um jeito, saio na próxima”), um perfume perdido regista-se como recordação numa caixa esquecida com fotografias lá dentro. Tudo desaparece aos poucos, ficando para trás um rasto de memórias espalhadas pela casa que respira, caminha, bate as portas em sinal de afirmação. Vou buscar um livro à estante, deixo um CD na língua de plástico que recolhe rapidamente…talvez Wagner, talvez Mozart. Um piano começa a cantar, depois um violino, depois uma chinfrineira organizada e sinfónica enche o ar sem que ninguém dê por isso. Sento-me a ler na poltrona que desenha nas suas costas uma silhueta de outro homem. Talvez Malraux, a guerra está perdida e um jovem prematuramente envelhecido vai propor a fuga ao pai de um camarada entretanto morto. Ele recusa amavelmente. Abre as janelas para a brisa da noite e liga o gramofone. Ou Mozart ou Wagner, um deles. A algazarra da rua cala-se por uns instantes, o som das explosões envergonha-se mas continua a avançar. O homem não parte. Vai ficar ali à espera de ser devorado pelas forças do caos. Pacífico, neutro, indiferente.
O vento faz-se sentir mais frio quando as estrelas já começaram o seu turno de sinalizar os céus. Um grupo de jovens reúne-se em ensaio numa sala de um convento antigo. Trabalham uma peça medieval, uma cantiga de amigo, e no seu esforço exorcizam os gritos de vítimas torturadas agarrados às paredes. Torturados e executados, não pelo que fizeram, mas pelo que eram, pelo que tiveram o azar de ser quando nasceram. Um nome, um deus, uma cultura. Queimados vivos no Rossio ao Domingo para distracção da população lisboeta. As guitarras harmonizam o frio dos corredores do convento. A voz da cantora eleva-se à santidade, apaziguando o medo. Gritos colados aos azulejos há duzentos anos, almas perdidas que se vão acalmar esta noite e partir pela estrada sinalizada pelas estrelas. Na história perdida de Lisboa.
A porta bate outra vez quando o gelo já derreteu no copo de whisky e a caixa de musica se calou. A casa manda-me para a cama como uma mãe zelosa do descanso do seu filho. Arrumo as memórias à força desse estado intermédio que nada é a não ser sono, um estado de alma entre dois mundos, um mundo que não é. Uma vida que não sou, desenhada por memórias e insatisfação, saudades e paixões. Uma busca obsessiva pela harmonia nas terras do caos e da destruição. Uma satisfação interior ao perceber que também eu. Como tudo antes de mim e mais aquilo que virá, também eu. Mesmo as memórias vão partir um dia. A poltrona com uma silhueta de alguém, as fotografias, o perfume, os livros, a casa digna e elegante a atravessar o tempo. Quando nada as prender à memória de ninguém, também elas. As manhãs mal dormidas, as despedidas com lágrimas, a raiva da injustiça, o bom e o mau, tudo, também. E partirei como um jovem adolescente que atravessa o rio debruçado sobre a amurada de um barco, rumo ao Sul. Tudo é possível e tudo será novidade. O vento sorri na minha boca e o cheiro a mar estimula a imaginação. Partirei sonhador e esperançado, satisfeito por partir. À frente, tudo é possível, atrás as serpentes da destruição devoram-se entre si. Do outro lado do rio a vida continua, haverá amigos que me esperam para ajudar na ambientação. Os golfinhos ajudam a orientar o barco, mensageiros de boas notícias. E no entanto, tudo arde sem nexo lá atrás, tudo arde estupidamente. Parece que só lá estivemos para ser ardidos com o resto. Como se arder fosse a única maneira de embarcar e atravessar o rio.

Artur

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Duplex Negatio

No cerne está a vontade, na orla o consabido resíduo do que outrora se quis. Ou talvez seja o inverso: o real é só loucura d'impossível e orbitando fica a sábia reflexão. Ou então, ainda, de par em par andem os ventos do malogro e da esprança e isso que por sua natural natureza parcelar e antitético é evolua em compósita serenitude.
E, é assim, que, a final, sempre as partes sejam o todo.