quinta-feira, 24 de março de 2011

UM ADEUS AO FIM DA TARDE

O homem abriu a porta para o quintal e registou a suavidade daquele fim da tarde primaveril. As árvores começavam a exibir o seu vestido verde pespontado por botões tímidos, promessas de flores a caminho. Os pássaros esvoaçavam despreocupados nos céus, um gato preguiçoso vigiava deitado a possibilidade de uma refeição. O mundo reiniciava o ciclo do calor e do bom tempo na máquina circular das estações. Nada de novo nas várias décadas de vida que pesavam sobre os ombros do homem. Pacientemente foi buscar um bidon esquecido de umas obras muito antigas e começou a enchê-lo de livros. Depois atirou lá para dentro o computador, o telemóvel, os remédios, as fotografias onde figurava desde menino, a caneta que lhe tinham dado no fim da escola primária. Regou tudo com combustível e atirou-lhe um fósforo Estava terminada uma das principais tarefas daquele dia.
Foi lá dentro e entrou na sala. Beijou uma a uma, todas as fotografias dos familiares. Dos que ficavam e dos que já tinham ido. Estava cansado, como quem levou uma vida inteira a arrastar com o corpo uma montanha que nunca se movia do lugar. Calmamente e sem rancor fazia o balanço de uma existência. Sempre a dever a todos e ninguém a dever-lhe de volta. Sempre incompreendido, maltratado, a pedir desculpa ao mundo todos os dias de manhã por estar vivo. A roda das obrigações sempre afinada na hora de contribuir com impostos, taxas, trabalho, sacrifícios em geral. A mesma roda fechada para obras na altura de lhe retribuir o esforço.
No quintal voltou a seguir o voo dos pássaros, a observar o vento nos ramos das árvores. O mar ouvia-se ao fundo, por detrás da colina nas traseiras do quintal. Tudo estava no seu lugar, tudo fazia parte da mesma unidade em harmonia perfeita. Tudo, menos ele. Estava cansado sem raiva, esgotado de esperança sobre um futuro negro que o esperava. A precariedade da saúde com o caminhar da idade, a repetição dos mesmos erros na construção do mundo, a multiplicação do sacrifício sem objectivo nenhum à vista. Voltar a viver os mesmos problemas que no início da vida era uma tarefa demasiado grande para voltar a ter. Entre os medicamentos e os alimentos começava a gerir agora o balanço dos dias que lhe diziam não haver espaço para ambos. Demasiado fraco para continuar a trabalhar, restava-lhe a boa vontade dos outros. Estava cansado.
Sentou-se no velho cadeirão de vime a observar a fogueira a arder, acabou o copo de whisky e preparou a caçadeira. Com um pé descalço a abraçar o gatilho e o cano na boca não demorou muito tempo. Ao estrondo do cartucho disparado seguiu-se a chuva de detritos ósseos e gotas vermelhas espalhadas no ar. Os pássaros dispersaram, o gato fugiu a sete pés e as árvores vibraram com o barulho. Não havia carta de despedida nem ultimas recomendações nem justificações de ultima hora. Aquela tinha sido a escolha da sua hora. A liberdade de marcar o seu fim. A última liberdade que resta ao ser humano escravo de uma contingência de privações que somam a vida. As religiões condenam, as leis punem, o poder finge que não vê. Mas o direito de escolher o fim continua a ser património da Humanidade.
O homem ficou sentado no seu cadeirão de vime como se estivesse a dormir uma sesta com a caçadeira no colo. As árvores continuaram, os pássaros continuaram, o gato continuou. A noite aproximou-se vagarosa e a Lua nasceu. De certa forma, também o homem continuou. E só ele soube a continuação daquela história…

Artur