quinta-feira, 1 de julho de 2010

A CURVA


Ao fim de uns anos de andar por aqui, chegamos sem esforço à conclusão de que tudo o que encontrámos quando começámos a nossa aventura de descobrir o mundo, tudo o que vimos na expectativa de algum dia as coisas serem melhores não passou de um devaneio ingénuo de adolescentes generosos de julgamento. Os erros são os mesmos, as injustiças também e o mundo nunca muda, a não ser de protagonistas. O que nos separa dos trogloditas é a tecnologia e uma ou outra brisa breve de alteração, rapidamente esmagada pela “evidência” de que não pode ser assim, e “desde que o mundo é mundo que…”, ou “deixemo-nos de utopias”. E volta tudo ao que era, enaltecendo o pior de que o homem é capaz, premiando-se a atrocidade e a selvajaria a coberto da “realidade”. Por isso estou cansado de fazer apreciações críticas, comentários, análises de comportamento. Sobra-me o passado e as recordações, sobram-me os fantasmas dos tempos em que havia esperança, em que o futuro não era uma repetição deprimente daquilo que sempre acontecia. Lembro-me de uma curva que havia à entrada de Colares que era chata de fazer de mota. Velocidade, ângulo de inclinação, mudança correcta e cuidados acrescidos ao anoitecer quando a neblina molhava discretamente o alcatrão. À direita ficava a casa dos Minas, entretanto vendida, a acompanhar a curva. Depois havia uma pequena ponte antes de entrar. Entrava sempre naquela curva a palpitar de excitação e medo, deslumbrado com o “desconhecido”. Podia ser uma queda inesperada, um tipo fora de mão, ou uma família de gansos a atravessar a estrada às três da matina.
Sintra era um mundo fora do mundo, um microcosmos que ia desde o clima até à paisagem e às pessoas. O tempo estava parado para além do Tempo e só existíamos nós e aquela estrada entra a vila e a Praia das Maçãs. Anoitecia com promessas de nevoeiro no alto da serra. Amanhecia uma luz extraordinária, limpa e brilhante, como se fosse o único dia, a única vez de amanhecer em toda a galáxia.
No outro dia passei naquela curva e tudo me voltou à memória como se fosse ontem. Os livros eram quadros vivos de histórias, a música era uma experiência ao vivo e as férias pareciam que nunca mais iam acabar.
A noite produzia sons incaracterísticos, cães a ladrar, vozes de dentro de casas desabitadas. De vez em quando um enforcado na floresta e, no fim da estrada, o mar. Sempre o mar a cumprimentar, a rir, a testemunhar a nossa liberdade. O pão com chouriço numa padaria em Nafarros, os cavalos no Banzão. Os Outonos castanhos e alaranjados das folhas das árvores, a lareira acesa e uma garrafa de Colares. O Verão ameno e todos os dias aquela curva. Aquele meio caminho entre nós e o desconhecido.
Entre a utopia e o massacre da existência, entre a alegria de viver e o combate à depressão.
Há uma Gillera 50 que continua a trabalhar no meu coração, que nunca me abandonou, que se exibe sem medo à entrada da curva para Colares. Como um cavalo experiente, mede distâncias, encurta o passo e arranca destemida para o outro lado. No Outono chuvoso, mete uma abaixo e ronca mais forte, inclina-se no ângulo perfeito com as duas rodas a guinchar em sintonia. Cumprimenta uma família de gansos que resolve atravessar a estrada às tantas da noite. Mas não morre. Tal como a consciência...

Artur

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