sábado, 17 de julho de 2010

CRÓNICAS DO BAIRRO

Cresci num bairro de Lisboa que nos anos 50 e 60 foi apelidado de “Quartier Latin” da cidade, que o mesmo é dizer: “o bairro dos artistas”. Actores, escritores, artistas plásticos, pensadores, tudo vivia ali se bem que na altura não déssemos muito conta disso. Na sua essência, Campo de Ourique era muito mais que um somatório de nomes de personalidades conhecidas, muito mais que um bairro de fortes tradições republicanas. Era essencialmente uma enorme escola urbana onde se aprendia a Democracia, a respeitar a diferença, a viver entre várias dimensões da cartilha da sociedade…para o bom e para o mau. Desde aristocratas decadentes até operários clássicos do conceito proletário, passando pela esmagadora maioria da classe média dos serviços e ministérios, o bairro enquanto espaço de ocupação, era apenas um. Os cafés, os jardins, as lojas, os restaurantes, o Correio, as escolas, etc, eram lugares onde todos se encontravam e conviviam de forma solidária, como numa aldeia desenhada a regra e esquadro pelos arquitectos pombalinos. A prova final deste conceito inscrevia-se nos filhos desta gente toda (eu e os meus amigos). Crescemos juntos, fomos à escola juntos e, nem por um instante nos apercebíamos que haveria uma hipotética escada na sociedade, ocupada nos vários degraus pelas nossas famílias. Aprendemos muito cedo a ver coisas diferentes em casas diferentes e a aproveitar essa diversidade em nosso benefício. Os nomes ficavam nas cadernetas do professor. Para se ser alguém no bairro, bilhete de identidade urbano, era preciso ter uma alcunha, uma espécie de nome de guerra, sem o qual a nossa existência pura e simplesmente seria ignorada. Ninguém saberia dizer a um gajo de fora quem era o Artur. Mas toda a gente conhecia o “Cara de Urso”. E, quem diz “Cara de Urso”, diria o “Olhinhos”, o “Estufa”, o “Carga de Ossos”, o “Pentes”, o “Osga”, a “Toupeira”, o “Riquinho”, “Sapo”, a “Patchouli”, o “Marinho Picareta”, o “Boneca”, o “Bichinho”,os irmãos ”Titó”, a “Escova”, o “Tiques”, o “Facadas” e o “Bicos”, só assim de repente.
Mas deixemo-nos de seriedades urbanísticas e mergulhemos s fundo na grande, na única questão que interessa: o ar do bairro. Talvez por beneficiar de uma localização privilegiada (todas as saídas eram para baixo) num planalto vizinho ao Vale de Alcântara, talvez por ser habitado por muitos artistas, o certo é que o ar ali era estranho. Um ar como não se consegue encontrar em mais lado nenhum (talvez nos Olivais) que desenhava três malucos em cada cinco habitantes, gerava verdadeiros criadores em todas as áreas e fazia de cada dia um pretexto de surpresa e de festa. Havia mesmo rituais de bairro como, por exemplo, mandar recados de uma ponta para a outra da rua, mas a cantar.
Imaginemos que um gajo acordava de manhã e abria a janela. Lá em baixo na rua via um conhecido a andar no passeio, atrasado para o trabalho. Imaginemos que era o “Bichinho” Abria a janela e cantava a sua saudação matinal: “O Bichinho ééééé rôôôôtoooo!” Atrasado para o trabalho, mas incapaz de responder a tão bela abordagem à sua pessoa, o “Bichinho” abrandava o passo e virava-se na direcção da voz. Punha as mãos nas ancas e respondia, qual ave madrugadora que saúda o Sol: “A p….. da tua mããããããããããee!

Artur

sexta-feira, 16 de julho de 2010

LIBERTARIAS



Vicente Aranda

Espanha, 1996

Espanha, 1936, princípios da Guerra Civil. As ruas enchem-se de gente que grita e se manifesta armada para defender a Republica contra a sublevação do exército nacionalista. Declarada a guerra, fica aberto o movimento “dentro e fora” das cidades e povoados, dos que fogem e dos que entram. Entram as forças revolucionárias anarquistas em Barcelona, foge a maior parte do clero. Maria (Ariadna Gil), jovem freira, é uma delas. Forçada a deixar o convento e muito longe de casa, encontra-se sozinha numa cidade onde não conhece ninguém. Ao fugir para dentro de um prédio repara numa pagela de um Sagrado Coração de Jesus a decorar a porta de entrada de um dos apartamentos. Julgando ser gente religiosa, não hesita e bate à porta. Afinal a religiosidade da entrada apenas escondia um bordel. Mal refeita ainda da surpresa, Maria vê chegar um grupo de combatentes que lhes explica as novas regras. Ou se vão embora de volta para casa ou se juntam a eles no combate. A prostituição acabou. A partir daquele dia as mulheres só se deitariam com os homens se assim o desejassem. Por sua vontade. Sob o comando de Pilar (Ana Belén), a nova secção de combate feminina (onde se inclui uma médium aleijada (Victoria Abril)), ruma agora a Saragoça.
(As Libertarias no filme)
É neste ritmo frenético, de acontecimentos a tombar sobre acontecimentos, sem tempo de respirar, que nos introduzimos na Guerra Civil Espanhola.
Após vinte anos de maturação, Aranda consegue construir um autêntico épico ao homenagear as mulheres, bem como o seu papel na guerra. Acompanhando cada uma das personagens vamo-nos aproximando de alguns aspectos do conflito e percebendo ao mesmo tempo a dimensão da sua importância que fascinou (e continua a fascinar) várias gerações em todo o mundo. Se Pilar encarna uma perfeita guerreira feminista, Charo (Loles León) é a prostituta de coração de ouro, Maria a inocente e Floren (a médium) a adivinha. Se lhe juntarmos um padre (Miguel Bosé) totalmente trocado em termos de moral, temos o grupo perfeito que nos leva a uma visita guiada às divisões humanas da guerra.
Em primeiro lugar o lado dos ideais. Os anarquistas enquanto libertadores de todos os oprimidos em busca de uma utopia igualitária; as mulheres enquanto elementos integrantes da luta, lado secundarizado e explorado da sociedade patriarcal, a exigirem um lugar no conflito para mais tarde reclamarem o seu espaço no triunfo; a luta política tanto contra os nacionalistas como os sectores tradicionais da esquerda, empenhados numa estrutura militar rígida e disciplinada; a derrota desses ideais em toda a linha. As cenas mais caricatas (o suicida fascista na varanda) e as mais patéticas e piegas, reforçam apenas o carácter simples e o espírito de entrega de cada um. Em comum sabem que preferem morrer de pé a passar uma vida inteira de joelhos.
(As verdadeiras Libertarias)
Desde a motivação política até à guerra de costumes, passando por momentos de grande coragem e sacrifício, LIBERTARIAS é uma homenagem às mulheres e a todos aqueles que se esforçaram ao longo da história para transformar a espécie humana numa vivência de “integração” em vez de “separação”.
Foram estes homens e mulheres, utópicos? Claro que sim! Mas os seus ideais acabaram por se tornar realidade duas gerações depois. O que só prova que a Utopia é tudo aquilo que ainda não foi feito.

Artur

NO PASARAN !

ESPANHA 1936 - 39



MAIS UM DO I BLOG YOUR PARDON

Não caminhes sobre a água dos dias
porque é neles que se afogam
os passos que damos


Antes mergulha o corpo
profundamente nas águas que virão
se forem brandas


E repara como a transparência das águas
depende da forma como andas

Carlos Lopes

sábado, 3 de julho de 2010

A CRÉDITO

A filha de uma amiga de um amigo fez esta curta-metragem, sendo o tema, a pobreza. Ou de como o endividamento em excesso é também uma forma de lá ir parar. Para 1º trabalho, não está nada mal. Gostei bastante. A jovem realizadora chama-se Sara.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A CURVA


Ao fim de uns anos de andar por aqui, chegamos sem esforço à conclusão de que tudo o que encontrámos quando começámos a nossa aventura de descobrir o mundo, tudo o que vimos na expectativa de algum dia as coisas serem melhores não passou de um devaneio ingénuo de adolescentes generosos de julgamento. Os erros são os mesmos, as injustiças também e o mundo nunca muda, a não ser de protagonistas. O que nos separa dos trogloditas é a tecnologia e uma ou outra brisa breve de alteração, rapidamente esmagada pela “evidência” de que não pode ser assim, e “desde que o mundo é mundo que…”, ou “deixemo-nos de utopias”. E volta tudo ao que era, enaltecendo o pior de que o homem é capaz, premiando-se a atrocidade e a selvajaria a coberto da “realidade”. Por isso estou cansado de fazer apreciações críticas, comentários, análises de comportamento. Sobra-me o passado e as recordações, sobram-me os fantasmas dos tempos em que havia esperança, em que o futuro não era uma repetição deprimente daquilo que sempre acontecia. Lembro-me de uma curva que havia à entrada de Colares que era chata de fazer de mota. Velocidade, ângulo de inclinação, mudança correcta e cuidados acrescidos ao anoitecer quando a neblina molhava discretamente o alcatrão. À direita ficava a casa dos Minas, entretanto vendida, a acompanhar a curva. Depois havia uma pequena ponte antes de entrar. Entrava sempre naquela curva a palpitar de excitação e medo, deslumbrado com o “desconhecido”. Podia ser uma queda inesperada, um tipo fora de mão, ou uma família de gansos a atravessar a estrada às três da matina.
Sintra era um mundo fora do mundo, um microcosmos que ia desde o clima até à paisagem e às pessoas. O tempo estava parado para além do Tempo e só existíamos nós e aquela estrada entra a vila e a Praia das Maçãs. Anoitecia com promessas de nevoeiro no alto da serra. Amanhecia uma luz extraordinária, limpa e brilhante, como se fosse o único dia, a única vez de amanhecer em toda a galáxia.
No outro dia passei naquela curva e tudo me voltou à memória como se fosse ontem. Os livros eram quadros vivos de histórias, a música era uma experiência ao vivo e as férias pareciam que nunca mais iam acabar.
A noite produzia sons incaracterísticos, cães a ladrar, vozes de dentro de casas desabitadas. De vez em quando um enforcado na floresta e, no fim da estrada, o mar. Sempre o mar a cumprimentar, a rir, a testemunhar a nossa liberdade. O pão com chouriço numa padaria em Nafarros, os cavalos no Banzão. Os Outonos castanhos e alaranjados das folhas das árvores, a lareira acesa e uma garrafa de Colares. O Verão ameno e todos os dias aquela curva. Aquele meio caminho entre nós e o desconhecido.
Entre a utopia e o massacre da existência, entre a alegria de viver e o combate à depressão.
Há uma Gillera 50 que continua a trabalhar no meu coração, que nunca me abandonou, que se exibe sem medo à entrada da curva para Colares. Como um cavalo experiente, mede distâncias, encurta o passo e arranca destemida para o outro lado. No Outono chuvoso, mete uma abaixo e ronca mais forte, inclina-se no ângulo perfeito com as duas rodas a guinchar em sintonia. Cumprimenta uma família de gansos que resolve atravessar a estrada às tantas da noite. Mas não morre. Tal como a consciência...

Artur

Super