terça-feira, 23 de março de 2010

AKIRA KUROSAWA


Qualquer estudo do cinema contemporâneo estará irremediavelmente incompleto sem uma leitura atenta dos filmes japoneses. Qualquer estudo do cinema japonês será nulo se não contar com a obra de Akira Kurosawa. Embora não sendo o eleito das audiências do seu país, por razões a avaliar mais adiante, Kurosawa construiu com a sua obra de 30 filmes uma intrincada rede entre o Japão do pós-guerra e o ocidente que, além de aproveitar a ambos os lados, o torna no realizador japonês mais admirado e estimado fora do Japão. O seu nome começa a dar nas vistas no Festival de Veneza de 1951, quando RASHOMON ( AS PORTAS DO INFERNO) arrebata o Leão de Ouro. A história de um acto violento contado através dos depoimentos contraditórios de quatro testemunhas, foi considerado por muitos como um acto de diplomacia. O mundo ficava a saber que o Japão, temido e odiado durante a II Guerra Mundial, também era capaz de produzir obras de arte que questionavam as fundações da violência, do despotismo sexual e da necessidade humana da mentira para salvar a pele. Depois de ROSHOMON, nada seria como dantes.

PRIMÓRDIOS
Akira Kurosawa era o filho mais novo numa família de sete irmãos, descendente directa de uma linha de samurais. Logo no decorrer do ensino primário, a prática da esgrima tradicional japonesa (Kendo) e a pintura, rapidamente se convertem nas suas disciplinas curriculares preferidas, influenciando todo o seu futuro. Terminados os estudos secundários, o jovem Akira matricula-se numa escola de Belas Artes em Tóquio, a academia Dushuka. Nesse período estudará principalmente a pintura clássica e moderna, situação que se viria a revelar decisiva na sua obra. Em praticamente todos os seus filmes, Kurosawa faz questão de desenhar a maioria dos planos. Adversas condições financeiras levam-no a abandonar a Pintura e a concorrer em 1936 aos estúdios PCL (imediatamente absorvidos pela Toho). Começando como argumentista para outros realizadores, torna-se também assistente de realização de Kajiro Yamamoto. Em 1941 esta parceria assina a película UMA (OS CAVALOS DORMEM EM PAZ), sendo muitas das cenas de exteriores rodadas pelo próprio Kurosawa.
(RASHOMON)

PRIMEIRAS OBRAS
As primeiras obras realizadas por Kurosawa são rodadas em plena guerra, facto a que não é alheia a figura da censura a algumas cenas de SANSHIRO UGATA (A LENDA DO GRANDE JUDO (43)), consideradas demasiado sentimentais, apesar da tendência nacionalista do filme. Em 1944 surge ICHIBAN UTSUKUSHIKU (O MAIS BELO), onde se começa a desenhar um olhar pessoal do autor, tendo como objecto central o Poder e a cadeia de comando numa fábrica centrada no esforço de guerra. O filme procura analisar a perspectiva moral dos operários. No ano seguinte é rodada uma continuação do primeiro filme, SNSHIRO UGATA II (A NOVA LENDA DO GRANDE JUDO) e TORA NO O FUMU OTOKOTACHI (OS HOMENS QUE CAMINHAM NA CAUDA DO TIGRE). Neste último, dispondo de uma enorme escassez de meios, Kurosawa consegue fazer uma adaptação do reportório Kabuki (forma de teatro japonês conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquilhagem usada pelos seus actores), sendo algumas das cenas passadas na floresta um ensaio para ROSHOMON. Segue-se WAGA SEISHUN NI KUI NASHI (NÃO LAMENTO NADA DA MINHA JUVENTUDE) (46), talvez o primeiro filme onde o realizador exprime abertamente o seu sentido humanista. De destacar a interpretação notável da actriz Setsuko Hara na pele de uma esposa fiel aos ideais do seu marido, julgado como espião durante a guerra. Neste filme vamos encontrar também o passo curto no ritmo de montagem, característica que se irá manter nos trabalhos seguintes. Após um melodrama rodado na Tóquio do pós-guerra, SUBARASHIKI NICHIYOBI (UM MARAVILHOSO DOMINGO) (47), segue-se YIDORE TENSHI (O ANJO BÊBADO) (48), onde, nos “bas-fonds” da mesma cidade, se confrontam um médico alcoólico e um “gangster” tuberculoso. Num fundo degradado de corrupção, o segundo é tratado pelo primeiro. Este é também o início de uma longa colaboração do actor Mifune (o “gangster”) com o realizador em vários filmes, até à década de 60.Em NORAINU (O CÃO RAIVOSO) (49), mifune é um polícia que procura recuperar a sua pistola roubada. Muitos viram aqui algum paralelismo com LADRÕES DE BICICLETAS de De Sicca, mas, para Kurosawa, este foi um pretexto para pintar um quadro de Tóquio no pós-guerra, debaixo de um Verão escaldante, impondo a sua mestria técnica. A esse propósito é de realçar a cena do combate final. Consagrado actor fetiche de Kurosawa, Mifune atinge a celebridade com a interpretação do bandido Tajomaru em RASHOMON (50), filme de charneira na obra do realizador, e que ao mesmo tempo lhe abre as portas para a consagração internacional, ou seja, Leão de Ouro no Festival de Veneza e Óscar para o melhor filme estrangeiro da Academia de Hollywood.

UMA PONTE PARA O OCIDENTE
(O IDIOTA)

Como atrás ficou dito, RASHOMON foi decisivo na obra do cineasta. A vários níveis. Se por um lado permitiu a divulgação do seu trabalho no Ocidente, por outro abriu ao realizador o espaço e a liberdade para a concretização de projectos muito mais ambiciosos e dispendiosos no contexto da indústria japonesa. Além disso, depois de Kurosawa ficava aberto o mercado internacional para um lote significativo de cineastas oriundos daquelas paragens asiáticas. Adaptando duas novelas de Ryunosuke Akutagawa, o filme propõe-nos uma visão “pirandelliana” do mundo, onde cada personagem, incluindo o morto, nos dá a sua versão dos acontecimentos acerca de um caso de violação ocorrido no Japão medieval. Inicia-se uma nova fase na carreira do realizador, que escolhe adaptar clássicos da literatura universal enquadrados no contexto cultural japonês. HKUCHI (O IDIOTA) (51), adaptado do célebre romance de Dostoievsky, KUMONOSU-JO (O TRONO DE SANGUE) (57), baseado no clássico shakespeareano “Macbeth”, e DONZOKO (57), segundo um texto de Gorki, constituem um primeiro fôlego, nesta verdadeira fornalha de clássicos da literatura transformados em clássicos do cinema.
Espaço ainda para destacar o mais lúcido testemunho de humanismo existencial, realizado em 1952, IKIRU (VIVER), Urso de Prata no Festival de Berlim. Um funcionário municipal com um cancro terminal elimina toda a formalidade da sua vida para fazer alguma coisa pelos outros, tentando assim dar um significado à sua existência. Sentindo a insuficiência do conforto das suas relações pessoais, o homem decide empenhar os meses que lhe sobram de vida na construção de um parque na cidade. A obsessão assustadora e o brilho translúcido do seu olhar (fantástica interpretação de Takashi Shimura) compõem uma tensão explosiva que no entanto é sempre contida. No fim o parque é construído, o homem morre e o seu espírito flutua subtilmente no movimento de um baloiço vazio. Foi o mais perto que estivemos de encontrar a santidade humana num filme do grande mestre…

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