terça-feira, 23 de março de 2010

KUROSAWA II


(OS SETE SAMURAIS)

OS FILMES HISTÓRICOS

Mas foi sobretudo com os filmes históricos (jidai-geki) que Kurosawa construiu a sua reputação no Ocidente, sendo o mais célebre SCHICHININ NO SAMURAI (OS SETE SAMURAIS) (54). Leão de Prata em Veneza, o filme situa-se no tempo das guerras civis de um Japão feudal, onde os camponeses se encontram à mercê de todo o tipo de bandidos. Cobrando apenas alimentação e alojamento, um grupo de samurais compromete-se a proteger uma aldeia a pedido dos seus dirigentes. O desespero dos aldeões, cansados de perder todos os anos o resultado das suas colheitas para os bandidos, e a falta de recursos para pagar em dinheiro a protecção dos samurais, convence o guerreiro mais velho. Estabelecendo um sistema de defesa da aldeia e treinando os camponeses para que no futuro possam defender-se das incursões de qualquer inimigo externo, os samurais encarnam o espírito mítico dos guerreiros, defensores dos mais altos princípios éticos. Nova grande passagem do humanismo existencial de Kurosawa, onde emerge a figura do herói solitário que impõe aos seus contemporâneos um postulado ético de comportamento e acção. Uma imagem que se vai desenvolvendo em força com KAKUSHI TORIDE NO SAN AKUNIN (A FORTALEZA ESCONDIDA) (58), YOJIMBO (O INVENCÍVEL) (61), SANJURO (62) e AKAHIGE (O BARBA RUIVA) (65).

TEMPOS DIFÍCEIS

Depois de 1965 o “imperador do cinema japonês” atravessa um dos períodos mais difíceis da sua carreira. Vários projectos rejeitados pela máquina de Hollywood e o fracasso comercial de DODESKADEN (70) contribuem em grande parte para uma tentativa de suicídio em 71, felizmente mal sucedida. Este breve mas intenso episódio da sua vida ficará para sempre envolto numa aura de mistério. Um mistério fortalecido pela raridade com que dava entrevistas, bem como pela ausência de comentários à sua tentativa de suicídio. A grandeza, o mistério e o segredo que sempre acompanharam o mestre, nem por isso ajudou a afastar as opiniões detractoras da sua obra. Houve quem entendesse que os seus filmes se afastavam da realidade do seu país, deixando de ter qualquer relevância para as plateias japonesas. Havendo o não alguma pertinência nestas opiniões, o certo é que Kurosawa manteve sempre nas suas atitudes uma convicção inabalável. Tal como um grande samurai. O perfeccionismo da produção dos seus filmes exigia um esforço financeiro que a industria japonesa não podia ou não queria acompanhar. Por outro lado, o seu compromisso com um ideal humanístico entrava em conflito directo com uma nova geração que emergia egoísta, conservadora e materialista. Adolescentes que preferiam ser assustados em vez de inspirados pelos filmes…
Um novo fôlego começa a ganhar forma em 73, quando a então Rússia soviética lhe propõe fazer DERSU UZALA (O LOBO DAS ESTEPES) (75), uma história passada no final do séc. XIX sobre um siberiano da floresta que se torna guia de uma expedição geodésica. Primeiro prémio no Festival de Cinema de Moscovo, Óscar para o melhor filme estrangeiro em 1976, DERSU UZALA teve a particularidade de, em plena Guerra Fria, vencer dos dois lados da barricada, o que só por si ilustra bem a consensualidade universal sobre uma obra.

KAGEMUSHA

ENTRE COLOSSOS E MEMÓRIAS
O novo fôlego da notoriedade de Akira Kurosawa recoloca-o a nível mundial num pedestal de onde jamais sairá. A dupla Lucas/Coppola e a 20 Century Fox ajudam-no a produzir KAGEMUSHA (A SOMBRA DO GUERREIRO) (80), Palma de Ouro no Festival de Cannes. Encenando as contradições do Poder e as suas representações, Kurosawa assina um documento histórico fabuloso, passado no séc. XIV, onde um ladrão se faz passar pelo senhor Takeda.
Em 1984 surge RAN (OS SENHORES DA GUERRA), uma versão livre e niponizada de “A Tragédia do Rei Lear” de Shakespeare. Outro colosso do cinema de regresso ao feudalismo japonês, outra oportunidade de interrogar as fundações e o exercício do Poder, outra adaptação de um dos seus autores preferidos. Segue-se SONHOS (90) com a ajuda dos amigos e discípulos Spielberg e Lucas. Novo colosso dividido entre a inocência da infância e a agressividade dos pesadelos. Entre as memórias do paraíso perdido e do horror da guerra, entre a harmonia da Natureza e a ameaça da catástrofe nuclear. E, de vez em quando, uma pausa para penetrar nos quadros de Van Gogh, ou mesmo para o reencontrar (Scorcese), preparando-se para executar mais um trabalho. Depois de SONHOS, regressa-se ao tempo das memórias no tempo de hoje com RAPSÓDIA EM AGOSTO. Uma construção de testemunhos de um passado que teima em deixar as suas marcas no coração dos sobreviventes da guerra. A bomba atómica, a guerra, a ausênca dos que partiram. Com uma interessante prestação de Richard Gere. E para finalizar MADADAYO (AINDA NÂO) (93), um filme-testamento, ou simplesmente, o último filme. A criança que joga às escondidas e que grita para a outra não destapar os olhos, e o velho mestre homenageado pelos antigos discípulos que ainda não encontrou o poiso definitivo, o refúgio, para que a sua existência se cumpra. A recusa de ver o jogo acabado, ou cumprido, embora o seu desenrolar tenha inevitavelmente que chegar ao fim. A indeterminação da temporalidade previsível.

Artur

AKIRA KUROSAWA


Qualquer estudo do cinema contemporâneo estará irremediavelmente incompleto sem uma leitura atenta dos filmes japoneses. Qualquer estudo do cinema japonês será nulo se não contar com a obra de Akira Kurosawa. Embora não sendo o eleito das audiências do seu país, por razões a avaliar mais adiante, Kurosawa construiu com a sua obra de 30 filmes uma intrincada rede entre o Japão do pós-guerra e o ocidente que, além de aproveitar a ambos os lados, o torna no realizador japonês mais admirado e estimado fora do Japão. O seu nome começa a dar nas vistas no Festival de Veneza de 1951, quando RASHOMON ( AS PORTAS DO INFERNO) arrebata o Leão de Ouro. A história de um acto violento contado através dos depoimentos contraditórios de quatro testemunhas, foi considerado por muitos como um acto de diplomacia. O mundo ficava a saber que o Japão, temido e odiado durante a II Guerra Mundial, também era capaz de produzir obras de arte que questionavam as fundações da violência, do despotismo sexual e da necessidade humana da mentira para salvar a pele. Depois de ROSHOMON, nada seria como dantes.

PRIMÓRDIOS
Akira Kurosawa era o filho mais novo numa família de sete irmãos, descendente directa de uma linha de samurais. Logo no decorrer do ensino primário, a prática da esgrima tradicional japonesa (Kendo) e a pintura, rapidamente se convertem nas suas disciplinas curriculares preferidas, influenciando todo o seu futuro. Terminados os estudos secundários, o jovem Akira matricula-se numa escola de Belas Artes em Tóquio, a academia Dushuka. Nesse período estudará principalmente a pintura clássica e moderna, situação que se viria a revelar decisiva na sua obra. Em praticamente todos os seus filmes, Kurosawa faz questão de desenhar a maioria dos planos. Adversas condições financeiras levam-no a abandonar a Pintura e a concorrer em 1936 aos estúdios PCL (imediatamente absorvidos pela Toho). Começando como argumentista para outros realizadores, torna-se também assistente de realização de Kajiro Yamamoto. Em 1941 esta parceria assina a película UMA (OS CAVALOS DORMEM EM PAZ), sendo muitas das cenas de exteriores rodadas pelo próprio Kurosawa.
(RASHOMON)

PRIMEIRAS OBRAS
As primeiras obras realizadas por Kurosawa são rodadas em plena guerra, facto a que não é alheia a figura da censura a algumas cenas de SANSHIRO UGATA (A LENDA DO GRANDE JUDO (43)), consideradas demasiado sentimentais, apesar da tendência nacionalista do filme. Em 1944 surge ICHIBAN UTSUKUSHIKU (O MAIS BELO), onde se começa a desenhar um olhar pessoal do autor, tendo como objecto central o Poder e a cadeia de comando numa fábrica centrada no esforço de guerra. O filme procura analisar a perspectiva moral dos operários. No ano seguinte é rodada uma continuação do primeiro filme, SNSHIRO UGATA II (A NOVA LENDA DO GRANDE JUDO) e TORA NO O FUMU OTOKOTACHI (OS HOMENS QUE CAMINHAM NA CAUDA DO TIGRE). Neste último, dispondo de uma enorme escassez de meios, Kurosawa consegue fazer uma adaptação do reportório Kabuki (forma de teatro japonês conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquilhagem usada pelos seus actores), sendo algumas das cenas passadas na floresta um ensaio para ROSHOMON. Segue-se WAGA SEISHUN NI KUI NASHI (NÃO LAMENTO NADA DA MINHA JUVENTUDE) (46), talvez o primeiro filme onde o realizador exprime abertamente o seu sentido humanista. De destacar a interpretação notável da actriz Setsuko Hara na pele de uma esposa fiel aos ideais do seu marido, julgado como espião durante a guerra. Neste filme vamos encontrar também o passo curto no ritmo de montagem, característica que se irá manter nos trabalhos seguintes. Após um melodrama rodado na Tóquio do pós-guerra, SUBARASHIKI NICHIYOBI (UM MARAVILHOSO DOMINGO) (47), segue-se YIDORE TENSHI (O ANJO BÊBADO) (48), onde, nos “bas-fonds” da mesma cidade, se confrontam um médico alcoólico e um “gangster” tuberculoso. Num fundo degradado de corrupção, o segundo é tratado pelo primeiro. Este é também o início de uma longa colaboração do actor Mifune (o “gangster”) com o realizador em vários filmes, até à década de 60.Em NORAINU (O CÃO RAIVOSO) (49), mifune é um polícia que procura recuperar a sua pistola roubada. Muitos viram aqui algum paralelismo com LADRÕES DE BICICLETAS de De Sicca, mas, para Kurosawa, este foi um pretexto para pintar um quadro de Tóquio no pós-guerra, debaixo de um Verão escaldante, impondo a sua mestria técnica. A esse propósito é de realçar a cena do combate final. Consagrado actor fetiche de Kurosawa, Mifune atinge a celebridade com a interpretação do bandido Tajomaru em RASHOMON (50), filme de charneira na obra do realizador, e que ao mesmo tempo lhe abre as portas para a consagração internacional, ou seja, Leão de Ouro no Festival de Veneza e Óscar para o melhor filme estrangeiro da Academia de Hollywood.

UMA PONTE PARA O OCIDENTE
(O IDIOTA)

Como atrás ficou dito, RASHOMON foi decisivo na obra do cineasta. A vários níveis. Se por um lado permitiu a divulgação do seu trabalho no Ocidente, por outro abriu ao realizador o espaço e a liberdade para a concretização de projectos muito mais ambiciosos e dispendiosos no contexto da indústria japonesa. Além disso, depois de Kurosawa ficava aberto o mercado internacional para um lote significativo de cineastas oriundos daquelas paragens asiáticas. Adaptando duas novelas de Ryunosuke Akutagawa, o filme propõe-nos uma visão “pirandelliana” do mundo, onde cada personagem, incluindo o morto, nos dá a sua versão dos acontecimentos acerca de um caso de violação ocorrido no Japão medieval. Inicia-se uma nova fase na carreira do realizador, que escolhe adaptar clássicos da literatura universal enquadrados no contexto cultural japonês. HKUCHI (O IDIOTA) (51), adaptado do célebre romance de Dostoievsky, KUMONOSU-JO (O TRONO DE SANGUE) (57), baseado no clássico shakespeareano “Macbeth”, e DONZOKO (57), segundo um texto de Gorki, constituem um primeiro fôlego, nesta verdadeira fornalha de clássicos da literatura transformados em clássicos do cinema.
Espaço ainda para destacar o mais lúcido testemunho de humanismo existencial, realizado em 1952, IKIRU (VIVER), Urso de Prata no Festival de Berlim. Um funcionário municipal com um cancro terminal elimina toda a formalidade da sua vida para fazer alguma coisa pelos outros, tentando assim dar um significado à sua existência. Sentindo a insuficiência do conforto das suas relações pessoais, o homem decide empenhar os meses que lhe sobram de vida na construção de um parque na cidade. A obsessão assustadora e o brilho translúcido do seu olhar (fantástica interpretação de Takashi Shimura) compõem uma tensão explosiva que no entanto é sempre contida. No fim o parque é construído, o homem morre e o seu espírito flutua subtilmente no movimento de um baloiço vazio. Foi o mais perto que estivemos de encontrar a santidade humana num filme do grande mestre…

黒澤 明




23 -Março -1910 / 6 -Setembro -1998

Domo Arigatô, Akarimasté, Grande Samurai

Ornamenta #174


quinta-feira, 18 de março de 2010

NÃO MATEM A LÍNGUA II

Se nos basearmos nos textos já publicados por vários signatários da petição contra o Acordo Ortográfico, são mais as contradições que se encontram do que a afirmação de uma reforma digna desse nome. Destaquemos alguns exemplos. De acordo com o novo acordo ortográfico está previsto retirar as consoantes mudas tal como “c” (acção) e “p” (aptidão), desprezando a etimologia das palavras. Mas está também previsto manter os “h” (homem, harmonia) devido à “etimologia das palavras”. Então em que é que ficamos? Desprezamos as consoantes mudas às segundas, quartas e sextas e mantemo-las às terças, quintas e sábados? Coerência, onde andas tu?? Para além de fazer tábua rasa da etimologia, a supressão de consoantes mudas como “c” e “p” vai criar terríveis dificuldades ao nível da pronúncia. Como é que pronunciaremos, por exemplo, “facção” ou adopção? “Fâção”? Adóção?
Mas o que ainda é mais estranho é que este acordo prevê este sacrifício de pronúncia em nome da ortografia em Portugal, nos Palop e em Timor. E perguntam vocês: “E porqe é que não está previsto este sacrifício no Brasil?” Porque não é assim que os brasileiros pronunciam. Por exemplo, a utilização do acento circunflexo em palavras como “antônimo” e “ténis”. E assim continuamos com dois tipos diferentes de ortografias, contrariando uma das razões mais importantes para a existência deste acordo, ou seja, a criação de um padrão comum na escrita do português. Se um dos objectivos era precisamente acabar com a dupla ortografia porque é que há cedências na pronúncia brasileira e não há em relação às outras?
Não só o acordo prevê a continuação de ortografias diferenciadas como também a de regras gramaticais distintas, o que acabará por manter a situação de um português de Portugal e outro do Brasil. Para quê então celebrar um acordo se ele não cumpre o seu objectivo principal, ou seja, o da unificação das ortografias de todos os países de expressão portuguesa???
Alterar a ortografia implica alterar fundações da língua, tradição etimológica e características próprias e intrínsecas de cada dialecto. A pronúncia é a base fundamental de um idioma e este acordo despreza-a, atirando-a para um plano secundário.
Há também quem diga que, não sendo por razões directamente relacionadas com a língua em si, o objectivo deste acordo visa objectivos puramente comerciais e diplomáticos. Como se a língua fosse um qualquer tipo de mercadoria negociável. Quem fez este acordo, das duas, uma. Ou não sabia que material é que tinha em mãos, ou não tinha qualquer qualificação para o fazer. Este acordo não combate o analfabetismo nem estreita laços culturais. Desagrega ainda mais a identidade ao provocar uma banalização da língua, património de todos, sistematicamente assassinado por uma classe política ignorante e irresponsável no que às políticas da Educação e da Cultura diz respeito e uma Comunicação Social fraca, impreparada e inútil na divulgação da maneira correcta de escrever português. Este acordo não serve, não interessa e deve ser riscado do mapa. Se o amigo leitor concorda com aquilo que estive aqui a dizer, faça-me o favor de assinar a petição contra o acordo ortográfico. Obrigaremos a Assembleia da República a retirar este aborto do nosso caminho. Muito obrigado.
ARTUR

NÃO MATEM A LÍNGUA

Sendo um dos últimos redutos em que a nossa identidade ainda pode ser encontrada e afirmada, a Linga Portuguesa (a Pátria de Fernando Pessoa) pode estar a levar mais um rude golpe no seu já longo calvário a caminho da desintegração ou total extinção. Num país em que os conteúdos impõem programas de Português sem rigor científico (no básico e no secundário) nem pedagógico, que despreza o valor e respectivo ensino da História, que se está nas tintas (a nível oficial) para a inauguração de um Museu dedicado à Língua Portuguesa (em S. Paulo), apresenta-se agora esta palhaçada que dá pelo nome de Acordo Ortográfico ao arrepio de tudo e de todos (Académicos, Escritores, Cientistas, organizações culturais, etc.). Porquê? Porque sim, para uniformizar e facilitar tanto o discurso diplomático como as trocas comerciais. Ministérios da Educação e da Cultura, com importantes responsabilidades num tema tão grave como este, mantém-se impávidos e serenos a assistir a mais esta valente “tareia” na Língua. Só na superfície é que poderemos considerar estarmos a debater um assunto mais do que secundário como adiante veremos. A correr já há algum tempo em forma de petição on-line, um grupo de cidadãos manifestou o seu total repúdio pela forma displicente, confusa e despropositada em que todo este processo ocorreu. Se, como eu, está em profundo desacordo com o novo Acordo Ortográfico, assine esta petição cujo objectivo é alcançar as 35 ml assinaturas, número mínimo para levar à Assembleia da República a obrigação desta lei ser debatida, corrigida ou eliminada. É para isso que serve a Democracia. A seguir tentarei de forma tão sucinta quanto possível, explicar o que está em risco. Se não tiverem paciência para ler as minhas palavras leiam por favor o texto da petição para perceber. Quem quiser, agora, siga-me.


RAÍZES

O português é uma das muitas línguas que nasce do latim, fruto das invasões romanas na Península Ibérica. A Cordilheira Cantábrica (séc. X) acabou por servir não só de barreira geográfica como de limite divisório de idiomas. O galego falava-se nas montanhas do Noroeste da Península e na capital do reino de Leão. Do outro lado da cordilheira, a Leste, na vizinhança do país basco formava-se outro dialecto, o castelhano. O galaico-português e o castelhano são irmãos com uma raiz comum, nascidos da mesma língua neo-latina, que evoluíram com o tempo em diferentes direcções. Nos nossos dias, uma e outra distinguem-se das restantes línguas românicas no vocabulário essencial, formas gramaticais análogas, o mesmo sistema de conjugações verbais. (*)
As principais distinções entre o português e o castelhano estão na entoação, articulação e ritmo, sugerindo que “na sua origem estão diferentes substratos, isto é, diferentes populações pré-romanas, que pronunciavam diferentemente o latim”. Quando se formou o reino de Portugal já o Noroeste da Península dispunha de uma identidade linguística, podendo afirmar-se a existência do galaico-português enquanto língua materna. O latim continuou a ser utilizado enquanto língua oficial nos primeiros tempos da nacionalidade. Afonso Henriques, Sancho I e Afonso III, escrevem os seus testamentos em latim. Mas em 1214, Afonso II, neto de Afonso Henriques deixou um testamento em português que consiste num dos primeiros documentos escritos na nossa língua.
Há já no ano de 1000, ou perto disso, manifestações que tendem a revelar uma certa autonomia cultural do Noroeste. Existem mosteiros cristãos moçárabes nas proximidades de Coimbra, (Vacariça e Lorvão), bem como no Norte do Douro. No princípio do reinado de Afonso Henriques é fundado o mosteiro de Sta. Cruz, de cónegos regrantes, onde se fabricam livros e onde se coleccionam anais latinos referentes à região. É de assinalr pela importância que veio a ter mais tarde, a fundação do Mosteiro de Alcobaça em 1152 por monges franceses.
Forma de comunicação, a língua é também o veículo privilegiado de afirmação e identidade nacional. Comunicar, pronunciar, escrever, falar. Eis um património que contribui decisivamente na construção de uma nação.

(*) Iniciação Na Literatura Portuguesa

António José Saraiva

Ed. Gradiva – Fevereiro 1994





“Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que os outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar, e que nos faz a nós moçambicanos, ficarmos mais Moçambique.”

Mia Couto

A obra de Mia Couto é talvez uma das mais paradigmáticas no que diz respeito à dinâmica de uma língua. A invenção de vocábulos e a forma de exprimir sentimentos utilizando a linguagem num processo de reconstrução, evidenciam a evolução linguística enquanto elemento activo e imprescindível no desenho de uma identidade. Espaço geográfico e cultural, formas de relacionamento comunitário e social, património histórico comum, tudo se mistura numa amálgama de regras, pronúncias e expressões que compõem uma língua. Tal como o português evoluiu do latim, assim os territórios de expressão portuguesa evoluem enquanto constroem a(s) sua(s) identidade. Mia Couto refere que a única forma de não se perder a influência do português em Moçambique é permitir que a língua portuguesa se possa “moçambicanizar”. Completamente de acordo. O que não pode acontecer é que a língua portuguesa acompanhe evoluções que não lhe dizem respeito ao pretender alcançar um padrão comum entre várias latitudes. Isso é pura e simplesmente ditar a sua sentença de morte.

ARTUR

quinta-feira, 4 de março de 2010

O SOUSA

Naquele tempo, a guerra já tinha acabado há dez anos mas o Serviço Militar Obrigatório continuava. Eu, e muitos como eu, que não tinham graves problemas de saúde ou não conheciam nenhuma “cunha” digna desse nome em secretarias esconsas do recrutamento, acabávamos condenados a cerca de 2 anos de botas pesadas, formaturas, e um sem fim de pormenores marciais de um processo que transformava mancebos em cidadãos prontos para enfrentar a vida. Não vou agora aqui explanar as razões ou opiniões acerca do assunto em si. Desse tempo, como de quase todos os tempos que vivi, as melhores recordações estão directamente ligadas ao elemento humano. As pessoas que conheci, as suas histórias e a universal improbabilidade de os nossos caminhos alguma vez se poderem ter cruzado. O Sousa foi um deles. Era um tipo magro e louro cheio de genica e bem disposto. Acabado o curso de Engenharia Civil no Porto, marchou como eu para Santarém. A sua espontaneidade, a sua forma simples e descomplexada de estar na vida, e a franqueza das suas conversas rapidamente nos aproximaram. Vivemos 5 meses juntos (de Março até Agosto), até que nos espalhámos pelos regimentos de Cavalaria do país.
Uma tarde, a atravessar um afluente do Tejo, com água até ao pescoço e vários kilos de equipamento no lombo, o Sousa explodiu: “ C……lhos ma f…da. Carvalhinho, se sairmos daqui vivos, vamos pagar uma promessa. – Eu ia atrás com um péssimo humor e respondi: - Olha lá, pareces os magalas do antigamente. Mantém a cabeça de fora da água e olha para a frente em vez de estar a pensar em ir a Fátima.
- Não é nada disso, pá. Uma promessa de turistas…
- Turistas?
- Sim. Vamos atravessar rios, mas em vez de ser como hoje, feitos mulas de carga, vamos como turistas. Com o equipamento todo. Para esquecer este triste dia num afluente do Tejo. Então, alinhas?
Claro que alinhei, embora na altura não desse grande importância à proposta daquele “enginhêiro” do Porto. O certo é que, depois da tropa mantivemos contacto e a ideia voltou à baila. E assim, num belo fim de tarde na Foz, numa esplanada, decidimos descer os três maiores rios do país em canoa. A promessa foi cumprida. Ou, pelo menos, parcialmente cumprida. Eu explico. Começámos no Douro, num passeio muito agradável iniciado perto da Régua. A paisagem, nova para mim, deslumbrou-me, para além da hospitalidade das gentes daquela região. É claro que às travessias de rio não podia faltar o roteiro gastronómico. Umas remadas na água e a seguir uns baldes de comida extraordinária, regada por outro tanto de vinhos magníficos. Afinal de contas, somos portugueses, porra!
A travessia do Tejo também correu bem. Partimos de Constância e fomos por ali abaixo. Foi a vez do Sousa se extasiar com o castelo de Almoroul e as explicações de roteiro. Se bem que a paisagem da lezíria já nos fosse familiar, foi mais um fim-de-semana exemplar de actividade física, gastronómica e contemplativa. Não necessariamente por esta ordem. Foi na vez do Guadiana que tudo se complicou. O Sousa não deixava nada ao acaso. Canoas, coletes, bússolas, mapas, itinerários, lanternas, coletes, não faltava nada. Ou não fosse ele engenheiro. Dia marcado, local escolhido, e lá fomos a caminho de Mértola, após cuidadosa preparação da jornada. Chegados lá, fomos brindados com uma surpresa desagradável. É que naquele Verão o Guadiana secara em alguns pontos do seu curso. Secara literalmente. Ainda não havia Alqueva. O Sousa chegou-se ao leito seco do rio e a sua expressão adquiriu contornos de raiva, misturados com uma tristeza imensa. Primeiro pensou que eu estivesse a gozar com ele. – Tás a brincar! Enton onde é que está o rio c…..lho? – o sotaque soltava-se à medida que o desespero tomava conta dele. – Tens a certeza que isto aqui é Mértola?
Respondi-lhe que sim, que era ali. Não havia dúvidas. Só faltava o Guadiana. O Sousa parecia uma criança que na manhã de Natal não encontrou nenhuma prenda no sapatinho. Ao fim de algum tempo, virou-se para mim: - Mas que terra é esta que se deixa ficar sem o rio? – Ainda lhe ia a dizer que as barragens em Espanha, mais aquele ano de seca, mas já não ouviu. Deu meia volta e arrancou em direcção à vila. Corri atrás dele. Só parou no gabinete de turismo. Lá dentro, um rapaz de 16, 17 anos dormitava entre folhetos e guias da região. O Sousa fez-se anunciar com um berro. – Acha bem esta merda? – o rapaz deu um salto e ficou a olhar para ele, que insistia – Estou-lhe a perguntar se acha bem esta merda? Bênho eu do Porto carregado de canoas e de material e chego aqui e apresentam-me esta desgraça. O que é que fizeram com o rio c…o ?– o miúdo tentava perceber a razão daquela ira sem êxito- Bocês dizem que aqui há um rio e não há nada. Mas que brincadeira é esta, afinal? O que é que está a pensar fazer?
A conversa continuou mais alguns minutos até que o Sousa percebeu que não havia nada a fazer. O rio secara e, com alguma sorte, talvez no Inverno voltasse a ser rio. O miúdo do turismo não podia fazer nada mas indicou-nos um excelente restaurante onde entrámos à uma da tarde e saímos já perto das 5. Começámos com um gaspacho e fomos andando pelos enchidos logo a seguir a uma açordinha de peixe. O tinto maravilhoso correu muito mais que as águas do Guadiana e o remate final ficou a cargo de uma aguardente caseira que transformou o dono do restaurante em nosso amigo para a vida. Acabámos a tarde sentados na margem do rio seco a falar de romanos e fenícios, mouros e cristãos. O Sousa apesar de tudo, não conseguia esconder uma pontinha de desapontamento. – Quarenta e tal graus, á beira de derreter os miolos, um rio que seca no Verão e que ninguém sabe quando volta… Estes mouros são doidos!

Artur

Ornamenta #160


segunda-feira, 1 de março de 2010

: ) : ) : )

Se por acaso
nos pariram
tão sem jeito
tão sem graça
não queiram agora
que vos faça
mais do que um manguito


Sou da geração
que ninguém quis
da geração onde existir
parecia ser pecado
e por isso escrevo
o grito que nunca se ouviu:


Vão para a puta que vos pariu!

Carlos Lopes

Ornamenta #157