Ontem, dia 29 de Setembro de 2009, assistimos a um dos piores momentos da história democrática portuguesa. Refiro-me, como é óbvio, à comunicação ao país de Sua Excelência O Presidente da República, Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva. Para quem ainda não percebeu, o senhor não está à altura do cargo que ocupa e, pelo contrário, toda a sua actuação se tem pautado por sucessivos desvios das contingências, deveres e responsabilidades implicados na magistratura que, infelizmente, exerce. No comunicado que ontem inflingiu à nação, ficámos todos a saber que acha normal que um seu assessor e homem "muito lá de casa" ande a semear pelos jornais suspeitas muito graves, na tentativa de manchar e contaminar a imagem dos governantes e outras figuras do PS. Todos pasmámos perante a classificação de "sentimento" aposta a essa actividade torpe e baixa de um indivíduo sumariamente demitido e desautorizado por esse mesmo acto. Já não nos admirámos tanto com esse afastamento: ao longo dos anos assistimos ao modo como o Prof. abandona e deixa cair a seu bel-prazer os serventuários que podem comprometê-lo neste ou naquele aspecto. Pessoalmente, causam-me arrepios aqueles corvos que pairam à volta de S. Excelência, aquelas eminências-menos-que-pardas que lhe fazem os recadinhos e realizam tarefas menos próprias de quem assume a postura de seriedade, ou que pensa que basta parecer sério para o ser. Ontem, ficou patente a raiva que já não pode ser contida, a secreta humilhação de ter que nomear um governo eleito pelo povo, quando gostaria de nomear a sua amiga Ferreira Leite, a quem fez todos os favores antes e durante a campanha eleitoral, subvertendo completamente do dever de inseção e equidistância do PR. Aliás, tenho para mim que o Sr. Dr. alimenta o desejo de reeditar a ambição formulada por Sá Carneiro nos anos 80: um presidente, uma maioria, um governo. Claro está, sem o talento e a "panache" do falecido... São apenas contas de mercearia, que alimentam a sua sede de poder e de glória.
Presumo que o Sr. Silva tenha em casa um espelho mágico que lhe devolve a imagem do Prof. Dr. Cavaco Silva, Presidente da República, garantia da estabilidade e da cooperação institucional, modelo de rigor, isenção e seriedade. Mas, como todos sabemos, os espelhos mentem e, nos últimos tempos ,aquilo que temos visto é uma figura manchada por "casos": Dias Loureiro, as acções do BPN, a "inventona" das escutas. O que vimos ontem foi uma figura patética que acha que o PR não pode ser escrutinado, nem criticado e que considera que pode fazer as declarações que fez num momento particularmente difícil para o país, em plena campanha eleitoral e a pouco tempo de nomear o governo. De seriedade, ética e equidistância estamos sobejamente conversados... De resto, Cavaco e Silva é só mais um tom de cinzento nestes dias de chumbo que são os nossos: ele e toda a classe política são co-responsáveis pelo estado de coisas a que chegámos e que são o resultado lógico de 30 anos de maus governos, incompetência generalizada da classe política, corrupção, subdesenvolvimento derivado da nojenta promiscuidade entre negócios e política (de que os seus amigos do BPN são um dos expoentes), expectativas e sonhos traídos de diversas gerações de portugueses. Quando o PR fala dos problemas do país esquece, mas nós não o deixaremos esquecer, que assistiu impávido e sereno ao desmantelar do estado social e ao ataque generalizado aos direitos e conquistas dos trabalhadores portugueses, levado a cabo pelo primeiro governo do Eng. José Sócrates. Só acordou quando sentiu beliscada uma pequena parcela daquilo que considera a sua coutada privada, ou seja, o estatuto político-administrativo dos Açores, que redundaria numa pequena diminuição dos poderes presidenciais. Acordou tarde, antes não tivesse acordado.
Sr. Presidente, por favor demita-se e vá para Boliqueime, para a vivenda Mariani ou para a marquise da Travessa do Possolo, gozar a reforma e ver passar o mundo que, manifestamente, não entende e que, reciprocamente, não o entende. Poupe-se às tristes e patéticas figuras que tem feito e que, provavelmente mal aconselhado, terá que continuar a fazer. Acabe a sua carreira política com a dignidade possível.
ARNALDO MESQUITA
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
SERMÃO AOS MATRAQUILHOS, TIAGO, CONFISSÕES
(SERMÃO AOS MATRAQUILHOS)
Fala Tiago:
A garagem ficava numa casa perto de Colares e tornou-se rapidamente o nosso local de ensaio preferido. Estava relativamente isolada das outras casas, numa elevação de onde se tinha a vista privilegiada da Serra mesmo à nossa frente. Comecei a conhecer aquela casa nos últimos anos do liceu e apaixonei-me por ela quase ao mesmo tempo que me apaixonei pela Matilde. Uma e outra faziam uma enorme unidade onde cabia toda a minha existência. Uma tarde, andávamos ainda todos de mota, saímos atrás do crepúsculo húmido de sempre em direcção à praia. Havia muito vento e decidimos mudar de poiso. Voltámos a Colares pela estrada e subimos à direita a caminho de Monserrate. Um breve aceno quando passámos à porta do “Chora” e a noite cada vez mais escura sobre nós como um manto azul-escuro de neblina. Sem saber como, acabámos à porta da entrada do Castelo dos Mouros. Umas piadas de circunstância, umas frases adolescentes e decidimos entrar. Corremos caminhos entre bosques encantados e ameias esquecidas pelo tempo. Perto de uma das torres suspensas nas nuvens olhámo-nos como se fosse a primeira vez. E foi. A nossa “estreia” foi feita neste outro planeta agarrado ao nosso, mas que não lhe pertence. O nosso grito da primeira vez foi como uma explosão de duas almas, duas estrelas que colidiram para formar uma nova estrela, ainda mais brilhante. E por ali ficámos até de manhã, a olhar um para o outro com a ponta dos dedos, com o toque da pele, indiferentes a tudo.
Mais tarde voltámos ao castelo, mas desta vez dentro de um carro e com sacos camas lá dentro. A nossa torre passou a ser um Renault 5 estacionado na reentrância do caminho da entrada para o castelo. Parecia a nossa casa de férias, o anexo da nossa paixão. Era como se nos tivéssemos amado em cada metro do caminho de terra, em cada degrau de pedra, com a bênção de um bosque que respirava paz.
Não sei se me compreende agora, porque é que “isto” nunca mais… porque é que eu me recuso a…porque é que, depois de tudo isto é impossível voltar a atingir este grau de excelência com outra mulher…
Quando a Matilde desapareceu no mar, levou com ela a vida de várias pessoas. Deixou-as aqui a andar mas com o espírito noutras paragens. Ninguém escolheu assim, embora tenha sido isso que aconteceu.
(Fotos de Sofia P. Coelho)
ARTUR
domingo, 27 de setembro de 2009
PARABÉNS, OBRIGADO
Mais uma noite de antologia, mais um momento mágico de canções e partilha, mais uma nova conquista no panorama da música nacional. A comemorar 30 anos de existência, os Xutos & Pontapés enchem o estádio do Restelo com 30 mil pessoas, facto inédito em bandas nacionais. A simplicidade de quem leu a vida com olhos de homem comum, escreveu as canções da forma mais evidente e sentida, e foi entendido por milhares e milhares que ontem lhes agradeceram. 30 anos a encantar, 30 anos a crescer, 30 anos a celebrar. Obrigado Tim, Zé Pedro, Kalu, Cabeleira e Gui. O rasto deste cometa ficou marcado para sempre nas nossas existências.
sábado, 26 de setembro de 2009
A LENDA DOS MALDITOS
THE DAMNED UNITED
Tom Hooper
Reino Unido, 2009-09-26
Baseado no livro de David Peace, intitulado “The Damned Utd.”, o filme conta-nos a história de uma das maiores lendas do futebol britânico das décadas de 60 e 70, o treinador Brian Clough. Uma história feita de êxitos e fracassos de um homem carismático que marcou para sempre adeptos, clubes, jogadores, dirigentes e técnicos que com ele privaram. Uma existência marcada por rivalidades, traições, invejas e triunfos, características próprias na construção de personagens míticos como Clough. O filme começa em 1974 quando a Inglaterra falha a qualificação para o Campeonato do Mundo desse ano. Alf Ramsey, o treinador responsável, é despedido e substituído por Don Revie, que tinha vindo a desenvolver uma carreira bem sucedida no Leeds United, Para o Leeds vem Brian Clough, antigo treinador do Derby County e graqnde crítico dos métodos de Revie.
A origem da rivalidade de Clough e Revie vem de algum tempo atrás, na altura em que treinavam o Derby e o Leeds respectivamente. Num jogo para a F.A. Cup (Taça de Inglaterra) em 1967, o Leeds era líder da Primeira Divisão, enquanto o Derby se preparava para a descida ao escalão inferior. A aceitação do resultado final (2 – 0 para o Leeds) acaba por ser comum, não sem antes Clough criticar duramente a equipa adversária por excesso de atitude violenta. A partir desse momento a rivalidade entre os dois treinadores vai ser uma constante ao longo das suas carreiras.
A história desenvolve-se entre passado e presente, que o mesmo é dizer, com Clough no Derby e mais tarde no Leeds. E se neste último uma das primeiras palestras aos jogadores é para lhes dizer que podem deitar fora os seus troféus por não terem sido ganhos de forma honesta, no Derby as coisas melhoram de dia para dia. Em 69 o Derby é campeão da II Divisão e em 72, pela primeira vez campeão nacional da primeira. Segue-se ainda uma extraotrdinária campanha na Taça dos Campeões Europeus que só terminará nas meias-finais frente à Juventus. E os problemas de Clough vão começar precisamente a partir daí. Longson, o presidente do Derby que investiu fortunas em aquisições, aconselha Clough na semana anterior a poupar a equipa no jogo do campeonato com vista ao embate europeu. Só que esse jogo é com o Leeds de Revie e Clough não ouve o presidente jogando com todos os trunfos que tem contra o rival. No dia do jogo com a Juventus a quantidade de lesões impede o Derby de se apresentar na máxima força, acabando por ser eliminado. A teimosia de Clough acaba por lhe custar o lugar, sendo despedido juntamente com o seu adjunto e amigo de sempre, Taylor. Aliás Taylor estará sempre com Clough, excepto no pequeno período em que este vai treinar o Leeds. No clube deixado por Revie as época é um somatório de fracassos e o Leeds arrisca-se a descer de divisão no ano a seguir a ter sido campeão. Clough é mais uma vez despedido. Revie falha como seleccionador nacional e desaparece do mundo futebolístico britânico. Brian Clough e Peter Taylor voltam a trabalhar juntos e a repetir uma campanha ainda mais bem sucedida do que com o Derby. Vão à II Divisão buscar o Nottingham Forest, para se tornarem campeões da II e da I. Nas épocas de 79- 80 e 80 -81 conseguem a rara proeza de conquistar a Taça dos Campeões europeus por duas vezes.
Este filme é dedicado a todos os amantes do futebol, em particular aqueles que são incondicionais do futebol britânico. Clough é a marca, o símbolo de uma fórmula mágica como se sente e vive o jogo naquelas paragens. Entre cânticos vagamente celtas e garrafas de cerveja, o espectador é transportado para outra dimensão. Um espaço onde ganhar é o objectivo, combater, o método, e deixar tudo no relvado a única regra. Sem paixão não há vitórias, sem fracassos não há sabedoria, sem fidelidade não há amor.
O filme termina referindo que Brian Clough foi o melhor treinador que a Inglaterra nunca teve.
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
ESTAMOS, ESPERAMOS, SONHAMOS
NÓS OS QUE AQUI ESTAMOS, POR VÓS ESPERAMOS
Marcelo Masagão
Brasil, 1998
Juntando imagens de arquivos, extractos de documentários e de algumas obras clássicas de cinema, a proposta deste projecto foi a de documentar uma perspectiva acerca das principais mudanças que marcaram o séc. XX. Misturando a existência de personagens que marcaram a História com a de homens comuns (que acabaram também por construí-la), o filme narra-nos uma sequência de acontecimentos que incluem criação, destruição, arte, sonho, realidade, vida e morte.
A frase que dá o título ao filme, comum de encontrar em vários cemitérios espalhados pelo mundo, sintetiza a atitude de um tempo em que, tanto a morte como a vida foram alvo de banalização. Com início na I Guerra Mundial, o mundo vai sofrer vários tipos de destruição, atravessar uma II Guerra Mundial e viver décadas de Guerra-fria. Pelo meio podemos acompanhar um jovem alfaiate francês que em 1911 resolve saltar da Torre Eifel vestido com um equipamento que ele julga que lhe permitirá voar, encontrar um chinês na sua bicicleta que executou vários professores universitários no tempo da Revolução cultural, rever o aspecto franzino e fragilizado de um homem que se chamava Gahndi e conseguiu unir o continente indiano em torno da ideia da independência. Há ainda tempo para assistir a um “baile” de dois grandes artistas em simultâneo. Ou seja, enquanto Fred Astaire tem uma curiosa coreografia com um candeeiro, Garrincha aplica dribles estonteantes no campo de futebol. A forma como as pernas dos dois artistas se combina com a mesma música é um dos momentos altos deste documentário. Contrariando uma característica clássica do género documental, o filme não tem narração. Os nomes e algumas breves frases “caem” sobre as imagens, de acordo com a necessidade de informação. De resto a banda sonora é composta por música (da autoria de Wim Mertens), efeitos sonoros e silêncios.
Além de premiado em vários festivais de cinema (Melhor Montagem no Festival do Gramado; Melhor Filme, Melhor Argumento e Melhor Montagem no Festival do Recife), o filme foi todo previamente concebido e montado em computador, sendo apenas no fim traduzido para película. Dos 140 mil dólares de custo da produção, 80 mil foram para gastos em pagamentos e direito de autor.
Numa concepção bastante original do trabalho documental, NÓS OS QUE AQUI ESTAMOS, POR VÓS ESPERAMOS, oferece-nos cerca de uma hora e meia do mais puro entretenimento numa dimensão informativa de grande relevância histórica. Com as imagens vai contando várias histórias sobre aqueles que nos esperam, do tempo em que já foram como nós. Um grande momento de Cinema.
Artur
(este filme pode ser visionado no You Tube. Basta escrever o seu título na janela de pesquisa)
domingo, 20 de setembro de 2009
sábado, 19 de setembro de 2009
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
terça-feira, 15 de setembro de 2009
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
domingo, 13 de setembro de 2009
sábado, 12 de setembro de 2009
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
domingo, 6 de setembro de 2009
CRÓNICA DE UM DOMINGO CINZENTO
A crónica de um Domingo cinzento ocorre em qualquer dos tempos que quisermos escolher, desde que sejam tempos que já foram. Ou ainda são, o que vai dar ao mesmo.
Naquela tarde de Verão a caminho do fim, Lisboa dormitava entre campanários solitários, jardins ferrugentos e ruas adormecidas pelo embalo de uma luz tímida. Nos largos e nas praças acumulavam-se multidões ruidosas que celebravam o fim de um tempo e o nascer de qualquer coisa. Qualquer coisa nova que se começava a construir sobre os despojos de ódios antigos, injustiças acumuladas, fome prolongada, guerras esbanjadas. Uma revolução pavoneava-se na esperança da maioria como uma mulher batida em frente a um jovem virgem abarrotado de certezas e auto-estima.
Nas sociedades recreativas corriam bailes de bairro entre velhos atentos, músicos bêbados e povo anónimo em geral. Outro tempo. O tempo de Jonas na tarde em que jogou uma das suas sete vidas. O quarto da pensão humilde onde veio parar com a mãe era demasiado pequeno para arrumar as suas esperanças no fim de uma atribulada viagem dos confins de um Império que o deixou de ser. Os sonhos estavam guardados ali perto, no cais, perdidos numa floresta de caixotes de madeira com nomes de família pintados no exterior. Conheceu Lídia numa dessas sociedades recreativas e, porque era demasiado jovem, trocou os sinais da sua paixão pelos indicadores de uma trituradora de homens. Confirmou a sua ingenuidade da pior forma com a vista desagradável de outro homem no seu lugar. Nessa tarde cedeu e, de uma vez por todas, despachou-se a experimentar aquilo que há muito lhe ofereciam. Fumou heroína por um canudo prateado, mergulhando nas profundezas do inconsciente a mágoa recente de uma vida que se interrompia muito antes de ser vida. Num jardim, debaixo de uma árvore, ao lado de uma estátua de um poeta do século anterior, um vulto de outro tempo. A experiência correu mal. Vomitou até quase à alma e desapareceu assustado para casa jurando a si mesmo que havia formas muito mais rápidas e menos dolorosas de assinar o fim do contrato com a vida. Correu para fora de si à procura do seu tempo.
Noutro banco do jardim um velho dormitava sentado com um chapéu surrado inclinado sobre os olhos. Preso de muitos anos, gozava agora a liberdade de viver sozinho numa cidade que já não era a sua. Tinha entrado à socapa num hotel fino. Encontrou uma jaqueta de um empregado distraído e vestiu-a. Dirigiu-se ao bar com o ar mais solene e mais profissional que conseguiu arranjar, sem levantar suspeitas. Olhou à volta. “Madamas” e ricaços assustados ultimavam fugas de um país subitamente enfurecido. Revolucionários barbudos espojavam-se nos sofás caros de couro rangente. Agarrou na primeira garrafa de whisky de 12 anos que encontrou e veio-se embora. Quando uma manifestação de jovens universitários desfilou à sua frente já tinha emborcado metade. Turvos e desfocados, a gritar palavras de ordem, exibiam punhos no ar e bandeiras com foices e martelos. O Paraíso estava ali ao virar da esquina. Só que para ele já era tarde. Sentou-se no jardim a emborcar a outra metade. O coração reclamou, os pulmões soluçaram um protesto. Só os pombos perceberam que se despedia. Saído de um tempo que não era o seu.
Alfredo mantinha o camuflado pendurado na parte de trás da porta do quarto. Tinha ido “alombar” como os outros para um lugar desconhecido, atrás de um inimigo que reclamava a terra onde nasceu. Voltou com a mochila carregada de certezas vazias e fantasmas dos mortos que deixou para trás. Agora o inimigo era amigo, a guerra terminara sem que ninguém tivesse perdido. Era para esquecer e continuar. Mas ele não conseguia continuar sem se lembrar. Um papalvo qualquer chamou-lhe assassino de criancinhas. Alfredo deu-lhe um nó no tronco e empacotou-o com a cabeça numa mesa até a partir em duas metades. Respirou fundo e saiu do tasco com a atenção por cima do ombro a registar a desaprovação dos outros. O filme mudara. A personagem era outra. Estava noutro tempo, noutra dimensão. Mas não no seu tempo.
Júlio estudava porque não conhecia outra maneira de justificar a sua existência e porque a alternativa que os pais lhe davam às notas negativas era morrer numa selva africana como o irmão mais velho. Na escola havia mais barulho que aulas, mais manifestações que testes, mais agitação do que rotina. Não percebia bem a razão de toda aquela euforia. Chegou-lhe vagamente a ideia que não repetiria o destino do seu irmão. A guerra tinha acabado. Ou melhor, tinha-se estilhaçado nas ruas em pequenas guerras entre partidos, esquerda e direita, frente e trás, cima e baixo, todos contra todos a querer inventar a sua ditadura particular. Naquele domingo agarrou numa lata de tinta que havia sobrado e resolveu decorar as vetustas paredes de uma catedral secular com todos os palavrões que conhecia. Por lá ficaram durante dias as suas palavras, na pedra velha de muitos Verões. Num tempo que não lhe pertencia.
Naquele tempo havia um momento em que se escreveu a História. Em que um mundo terminou e outro nasceu no seu lugar. E nesse tempo houve um Domingo cinzento de Verão a caminho do fim, em que alguns homens perderam a noção do tempo porque não lhe pertenciam. Eram seres sem tempo...
Artur
Naquela tarde de Verão a caminho do fim, Lisboa dormitava entre campanários solitários, jardins ferrugentos e ruas adormecidas pelo embalo de uma luz tímida. Nos largos e nas praças acumulavam-se multidões ruidosas que celebravam o fim de um tempo e o nascer de qualquer coisa. Qualquer coisa nova que se começava a construir sobre os despojos de ódios antigos, injustiças acumuladas, fome prolongada, guerras esbanjadas. Uma revolução pavoneava-se na esperança da maioria como uma mulher batida em frente a um jovem virgem abarrotado de certezas e auto-estima.
Nas sociedades recreativas corriam bailes de bairro entre velhos atentos, músicos bêbados e povo anónimo em geral. Outro tempo. O tempo de Jonas na tarde em que jogou uma das suas sete vidas. O quarto da pensão humilde onde veio parar com a mãe era demasiado pequeno para arrumar as suas esperanças no fim de uma atribulada viagem dos confins de um Império que o deixou de ser. Os sonhos estavam guardados ali perto, no cais, perdidos numa floresta de caixotes de madeira com nomes de família pintados no exterior. Conheceu Lídia numa dessas sociedades recreativas e, porque era demasiado jovem, trocou os sinais da sua paixão pelos indicadores de uma trituradora de homens. Confirmou a sua ingenuidade da pior forma com a vista desagradável de outro homem no seu lugar. Nessa tarde cedeu e, de uma vez por todas, despachou-se a experimentar aquilo que há muito lhe ofereciam. Fumou heroína por um canudo prateado, mergulhando nas profundezas do inconsciente a mágoa recente de uma vida que se interrompia muito antes de ser vida. Num jardim, debaixo de uma árvore, ao lado de uma estátua de um poeta do século anterior, um vulto de outro tempo. A experiência correu mal. Vomitou até quase à alma e desapareceu assustado para casa jurando a si mesmo que havia formas muito mais rápidas e menos dolorosas de assinar o fim do contrato com a vida. Correu para fora de si à procura do seu tempo.
Noutro banco do jardim um velho dormitava sentado com um chapéu surrado inclinado sobre os olhos. Preso de muitos anos, gozava agora a liberdade de viver sozinho numa cidade que já não era a sua. Tinha entrado à socapa num hotel fino. Encontrou uma jaqueta de um empregado distraído e vestiu-a. Dirigiu-se ao bar com o ar mais solene e mais profissional que conseguiu arranjar, sem levantar suspeitas. Olhou à volta. “Madamas” e ricaços assustados ultimavam fugas de um país subitamente enfurecido. Revolucionários barbudos espojavam-se nos sofás caros de couro rangente. Agarrou na primeira garrafa de whisky de 12 anos que encontrou e veio-se embora. Quando uma manifestação de jovens universitários desfilou à sua frente já tinha emborcado metade. Turvos e desfocados, a gritar palavras de ordem, exibiam punhos no ar e bandeiras com foices e martelos. O Paraíso estava ali ao virar da esquina. Só que para ele já era tarde. Sentou-se no jardim a emborcar a outra metade. O coração reclamou, os pulmões soluçaram um protesto. Só os pombos perceberam que se despedia. Saído de um tempo que não era o seu.
Alfredo mantinha o camuflado pendurado na parte de trás da porta do quarto. Tinha ido “alombar” como os outros para um lugar desconhecido, atrás de um inimigo que reclamava a terra onde nasceu. Voltou com a mochila carregada de certezas vazias e fantasmas dos mortos que deixou para trás. Agora o inimigo era amigo, a guerra terminara sem que ninguém tivesse perdido. Era para esquecer e continuar. Mas ele não conseguia continuar sem se lembrar. Um papalvo qualquer chamou-lhe assassino de criancinhas. Alfredo deu-lhe um nó no tronco e empacotou-o com a cabeça numa mesa até a partir em duas metades. Respirou fundo e saiu do tasco com a atenção por cima do ombro a registar a desaprovação dos outros. O filme mudara. A personagem era outra. Estava noutro tempo, noutra dimensão. Mas não no seu tempo.
Júlio estudava porque não conhecia outra maneira de justificar a sua existência e porque a alternativa que os pais lhe davam às notas negativas era morrer numa selva africana como o irmão mais velho. Na escola havia mais barulho que aulas, mais manifestações que testes, mais agitação do que rotina. Não percebia bem a razão de toda aquela euforia. Chegou-lhe vagamente a ideia que não repetiria o destino do seu irmão. A guerra tinha acabado. Ou melhor, tinha-se estilhaçado nas ruas em pequenas guerras entre partidos, esquerda e direita, frente e trás, cima e baixo, todos contra todos a querer inventar a sua ditadura particular. Naquele domingo agarrou numa lata de tinta que havia sobrado e resolveu decorar as vetustas paredes de uma catedral secular com todos os palavrões que conhecia. Por lá ficaram durante dias as suas palavras, na pedra velha de muitos Verões. Num tempo que não lhe pertencia.
Naquele tempo havia um momento em que se escreveu a História. Em que um mundo terminou e outro nasceu no seu lugar. E nesse tempo houve um Domingo cinzento de Verão a caminho do fim, em que alguns homens perderam a noção do tempo porque não lhe pertenciam. Eram seres sem tempo...
Artur
POEMA
Mais um magnífico poema do Carlos Lopes, disponível em iblogyourpardon.blogspot.com
Ainda me lembro de tudo
de como os dias nasciam
e de como
nesse instante
uma pequena morte
atravessava o corpo
ao despertar
Ainda me lembro
desse tempo sem lugar
e da fogueira
que nunca ardia
antes do fogo acabar
Ainda me lembro de tudo
de como os dias nasciam
e de como
nesse instante
uma pequena morte
atravessava o corpo
ao despertar
Ainda me lembro
desse tempo sem lugar
e da fogueira
que nunca ardia
antes do fogo acabar
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Lançamento
Amanhã pelas 18h na livraria Trama, na rua S. Filipe Nery (ao Rato, perto do PS) lançamento do meu novo livro "Ônfalo".
Apareçam que vai ser muito giro.
João Pereira de Matos
Apareçam que vai ser muito giro.
João Pereira de Matos
I.D.
Philip Davies
Reino Unido, 1995
Este é um filme a que podemos regressar várias vezes sem nunca nos arrependermos. Por várias razões. Ao abordar um aspecto politicamente incorrecto do mundo do futebol (o fenómeno do hooliganismo) não nos mostra uma única imagem de um jogo. Ao focar-se na temática da violência evita a exibição gratuita e inconsequente de acções violentas, permitindo a evolução dos personagens no correr da narrativa, sendo essa a principal razão da concentração do espectador. Acompanhando um tipo de comportamento difícil de aceitar, vai abrindo novas dimensões de análise e entendimento sobre o fenómeno nos meandros sociológicos da sua justificação. Senão, vejamos.
Nos anos 80 quatro polícias são nomeados para uma operação de infiltração no seio de uma das mais perigosas “firmas” (grupos de apoio em Inglaterra) do leste londrino, a do clube Shadwell F.C. (clube fictício). A polícia pretende saber de onde provém a orientação das sucessivas vagas de violência de rua causadas por esta firma. Quem as coordena nos bastidores. John (Reece Dinsdale) é aquele que mais se vai envolvendo nessa missão, deixando-se progressivamente integrar demasiado no meio da multidão de suspeitos que era suposto fiscalizar. Os seus sinais de perturbação começam a fazer-se sentir. A sua posição profissional e o seu casamento começam a degradar-se. Afastado dos dois, vamos acabar por encontrá-lo numa manifestação de neo-nazis, uma personagem completamente diferente da que nos foi apresentada no início do filme. E a excelente interpretação deste actor acaba por reforçar a linha mestra de toda a narrativa. Um homem aparentemente equilibrado e consciente das suas funções no seio da comunidade transforma-se num marginal violento. O problema de John é um problema de identidade. (I.D.). Ao integrar um modo de vida diferente do seu, não lhe consegue resistir, emergindo uma outra (ou não) personalidade.
O pendor hiper-realista do filme prende-nos até o último instante sem nos dar tempo para respirar. Mais do que as cenas de violência é o ambiente e o excelente trabalho dos actores que nos envolvem numa atmosfera de terror, principalmente pela credibilidade da situação. As frustrações e contradições da sociedade transformam cidadãos comuns em máquinas de violência extrema. Tendo o futebol como pretexto, esta violência é parte da sociedade em que vivemos, ou, o que é mais aterrador, parte de qualquer um de nós.
Por fim, I.D. é também uma história de choque de classes na época da Inglaterra de Margaret Thatcher (cuja imagem é recorrente nas paredes dos edifícios públicos). De um lado a classe média idealista, suburbana, proprietária e instável, contra a classe trabalhadora dos operários brancos, esquecida e desprezada durante esses anos. Apesar de toda a boa vontade da primeira, os polícias revêem-se no tempo em que foram jovens. O abismo onde a violência e a pobreza esmagam qualquer possibilidade integrada de lidar com a frustração.
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