quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

E ASSIM CONTINUAMOS...




"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,
aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,
sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,
pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;
um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,
e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que
um lampejo misterioso da alma nacional,
reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,
não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,
sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,
descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,
capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,
da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;
este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política,
torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,
incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,
iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,
e não se malgando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento,
de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Guerra Junqueiro, 1896.

Ornamenta #103


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Na Floresta

Dedicado a uma amiga que está no campo

"Quem saberá dizer qual a face do Anticristo ?"
F. Nietzsche

As terríveis imagens de abertura do filme - um bébé que cai por uma janela e morre, enquanto os pais têm relações sexuais - não são a porta para um imenso abismo, mas antes o pretexto para o mais amplo e profundo inquérito sobre as relações entre homens e mulheres que me foi dado ver em imagens cinematográficas. Sob o signo do amor e da morte, da fobia e do desejo, Von Trier procura encontrar os meios de expressar as pulsões avassaladoras, as tensões e as tragédias que se desenrolam dentro de cada ser humano e que a linguagem, na sua insuficiência, não consegue expressar, ou só consegue balbuciar deficientemente. Manejando o seu instrumento expressivo com mestria, o realizador dá literalmente a ver o modo como os seres são conduzidos pelas suas pulsões e os seus medos, numa esfera que está para além dos canônes civilizacionais e dos códigos artísticos que os procuram restituir. Noutros termos, o sistema de representação mostra explicitamente os corpos, o sofrimento, a floresta, os animais carregados de inocência (?), as potências mitológicas e os objectos saturados em extremo, como se procurasse mostrar o lado escondido, tenebroso, nocturno de cada ser confrontado com a sua condição primordial e não condicionada, num sistema de signos exacerbados, um reino onde dominam as leis da selva. No fundo, o que descobrimos na floresta do Éden é o mistério do corpo, do desejo e do prazer feminino e a sua capacidade de funcionar como um reactor nuclear ou de sol negro em fusão, das quais percepcionamos as insuportáveis radiações. E que é precisamente por causa do terror provocado pelas mulheres e pela feminilidade que as sociedades opressoras (em diversos graus, em épocas diversas, todas as sociedades engendram mecanismos de opressão), tomaram a cargo a tarefa de dirigir e controlar o desejo, o excesso vital, ou, como diria Nietzsche, a vontade de poder. Fica dito que ver este filme é uma experiência aterradora a todos os títulos, inebriante de excesso e de angústia, o que equivale a dizer que nada é tão difícil de ver como aquilo mesmo que está diante dos nossos olhos (Wittgenstein dixit) ou, por outras palavras, que tudo aquilo que nos é familiar é afinal aqui que nos é mais estranho e distante.
O filme chama-se "Anticristo" e foi realizado por Lars Von Trier

Ornamenta #097

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

DEPOIS DO JANTAR

E depois do jantar…depois do ritual da travessa, os caminhos ficam definitivamente desenhados entre a glória do prestígio, da sobrevivência e da popularidade e o anonimato da incerteza, do último lugar em qualquer fila de distribuição, do esquecimento, da angústia e da depressão. Assim se perfilam duas categorias distintas de cidadãos, dois mundos que ocasionalmente se vão encontrando, jogando jogos que acabam sempre com o mesmo vencedor. De um lado os senhores de muito prestígio, os inúteis que ocupam todas as inaugurações, que mandam bocas acerca de tudo e de nada com a maior autoridade, sem que alguém perceba bem qual é a sua actividade específica, a sua capacidade para, o critério da escolha dos temas. Esses fazem parte do mundo real, do mundo dos meios de comunicação, ocupados pelo preço de uma travessa, contratados para se favorecerem em circuito fechado e sempre que solicitados pelos donos do restaurante.
Do outro lado ficam os malucos, os que uivam para a Lua, que vão buscar assuntos e opiniões que ninguém quer saber, os deprimidos, os desesperados, os suicidas, os resistentes que conseguem aguentar uma vida inteira de ignorância sobre o seu trabalho. Esses fazem parte do mundo possível, daquele conceito que se poderia ter edificado se houvesse um pouco mais de bom senso, um pouco mais de cidadania, um pouco mais de respeito pela opinião de cada um.
E entre um país real e um país possível, cava-se um poço bem fundo, ateia-se uma fornalha do tamanho do tempo onde são sistematicamente sacrificadas gerações de ideias, projectos adiados, erros reparáveis, guerras evitáveis, simplesmente menos sofrimento. Na Ciência, Tecnologia, nas Artes, na Cultura, na Política, no Sistema Judicial, em todas as áreas existem elementos das duas equipas. Em todas as áreas há quem se sirva da travessa e quem o recuse fazer. E assim se faz a vida: de equívocos, manipulação e sacrifícios inúteis para que a Inutilidade nunca deixa de viver.
Entre um país real e um país possível vai-se construindo um Tempo com uma única certeza. Apesar de quase sempre ser o “real” a vencer o “possível”, nem uma nem outra equipa se deixam extinguir. Nem uma nem outra desaparece porque em todos os tempos, em todas as gerações, há sempre elementos novos que chegam para continuar a herança dos mais antigos. Qual é o sentido disto??? Ninguém sabe… Estamos todos demasiado concentrados no jogo que não conseguimos levantar a cabeça e perceber o que é que se passa fora do estádio. Um estádio desenhado em forma de travessa que nos tapa a vista para o Céu…

Artur

Ornamenta #086


quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O JANTAR

Primeiro atiram-te sorrisos esparsos, deixam cair elogios, afagam-te o ego acidentalmente. Admiram-se por pensarem exactamente isso que estás a dizer com grandes gargalhadas concordantes, Depois deixam que tudo se resuma a um ou outro encontro esporádico, perfeitamente casual, onde repetem o ritual de agradar. Ao fim de um tempo, sempre casualmente, lembram-se que vai haver um jantar em tal parte e que se calhar até acharias piada em ir. Convidam-te.
Na noite em que chegas, reparas que está lá um ou dois tipos que conheces de vez em quando no meio de uma data de gente que nunca viste. São todos muito simpáticos, atarefados em palmadinhas nas costas e isqueiros rápidos que te começam a tirar a vontade de fumar. Encaminham-te para a mesa sempre sob o signo da mais pura cordialidade. Fazem questão de arredar a cadeira para te sentares, distribuem-se aperitivos e fala-se de temas actuais da forma mais generalizada. Até que chega o momento da verdade, o do jantar propriamente dito. As travessas fumegantes começam a chegar vindas da cozinha, sob o olhar atento e esfomeado dos convivas. Uma delas é colocada á tua frente. Instala-se o silêncio na sala, os olhares concentram-se todos em ti. Este é o momento de todos os momentos da tua vida, a ocasião da escolha, o gesto de optar…ou não. Inclinas-te ligeiramente e sentes o cheiro da travessa através dos fumos que emana. Mas, por qualquer capricho do destino, da selecção gastronómica ou da ética, algo te diz que há ali qualquer coisa. Algo te avisa que se avançares nunca mais poderás recuar, é um caminho sem retorno.
Educadamente voltas-te a erguer e explicas que não tens fome. Que comeste há pouco tempo e que até nem tens passado bem ultimamente, mais uns enjoos, qualquer coisa que não anda a funcionar bem dentro de ti. Agradeces muito mas explicas que vais ter de declinar. Quase imperceptivelmente, os rostos de bonomia e franca camaradagem começam aos poucos a desenhar ligeiros traços de apreensão. O teu anfitrião acompanha-te até à porta, sempre atencioso e muito cordial contigo, embora aqui e ali essa cordialidade se comece a esgotar lentamente como uma maré. Chamam-te um táxi, o teu anfitrião despede-se de ti e a tua vida, ou melhor, a tua eterna vida vitoriosa e sem sobressaltos deixou de existir. Voltaste à condição de simples mortal porque recusaste assinar o contrato. Ao não querer comer preservaste a tua dignidade mas prejudicaste o lucro alheio, desafiaste o poder. Ninguém te irá perseguir ou sequer hostilizar daqui em diante. Serás mais um daqueles que não existem, que não são vistos, que ninguém ouve ou conhece. Serás mais um distinto anónimo que diz umas coisas interessantes mas a cuja voz se descola o estatuto de burro, impedindo-a de chegar ao céu. O teu discurso acabará invariavelmente onde começou: dentro de ti. Alguns daqueles convivas do jantar em que te recusaste a servir da travessa vão continuar a aparecer no teu caminho. Só que desta vez irão carregados de pressa, cheios de compromissos inadiáveis que se vão acumulando até ficar apenas um aceno ao longe. Mas não te podes queixar. Ao menos a ti serviram-te a travessa. Ao menos a ti, deram-te a escolher, estenderam-te o contrato. Tu é que escolheste não assinar ao não meter as mãos na travessa. Há milhões que, sem o saber, trabalham, isto é, são escravos deles. Resta-te o silêncio e a tranquilidade de consciência. Essa coisa vaga que não alimenta o corpo mas defende a alma…

Artur

Ornamenta #085


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ornamenta #078


DICIONÁRIO DE ESCRITORES - BOWLES, Paul




O marroquino deixou sobre a mesa o copo alto com o chá de menta e uma taça com os cubos de açúcar. Retirou-se com uma espécie de vénia demonstrativa de um respeito que as meras palavras não saberiam expressar. Paul olhou para o copo alto e esguio, elegante, que continha o líquido acastanhado no qual flutuvama folhas e caules de hortelã. Alguns desses caules ainda permaneciam agarrados às raízes das quais se desprendiam pequenas partículas do solo que as tinha sustentado.


O Café Paris era um oásis de tranquilidade no meio da agitada rua árabe, vibrante de vida na luz intensa do meio-dia. Ao contrário do que poderíamos ser levados a pensar, Paul Bowles não apreciava excessivamente os oásis, sabendo como sabia que não existe nenhum oásis onde possamos permanecer para sempre ao abrigo das tempestades. Aliás, o oásis pode ser uma justa metáfora da nossa precária condição: expostos aos elementos, a todas as agressões do exterior, momentaneamente encontramos um canto sossegado onde podemos lamber as feridas e ganhar fôlego para a nova investida. Mas nesse canto, tal como o "boxeur" castigado até ao cerne pelo seu adversário, só podemos permanecer no curto espaço de tempo enre os "rounds": o gongo atirar-nos-à de novo para o centro do ringue onde não poderemos escapar à carga brutal dos punhos que apostam tudo na nossa derrota.


Agora é um ancião, uma sombra do homem esbelto e elegante que, quarenta anos antes, tinha desembarcado em Tânger pensando ter encontrado o oásis. De facto, nunca mais abandonaria essa cidade que para ele não tinha segredos ou, se os tinha, eram daquele género de segredos que toda a gente conhece e que, só por isso, continuam a ser segredos.


Mirou-se no espelho da parede em frente: um mar de rugas, um oceano de cabelos brancos num fato de linho que acusava já o peso das décadas, uns olhos azul-pálido como os olhos de certos cegos que parecem ver, embora nada vejam. Pelo contrário, os seus olhos viam tudo e viam para além das aparências, dos fenómenos da cidade árabe, francesa, espanhol, portuguesa que Tânger era ou fingia ser.





Debra Winger não entrou perdida no café, mas Paul sabia que, atrás de si, se situava a porta por onde ela poderia escapar caso entrasse, ou quando entrasse. Isto, se não morresse antes, ele o único homem capaz de guiar para fora do labirinto do mundo e para dentro do oásis, para o canto de abrigo que se esconde nas traseiras do Café de Paris, no Pequeno Soco, Tânger, Marrocos.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

CRÓNICA PARA O CARLOS LOPES


LES 400 COUPS

François Truffaut

França 1959


Emblemático a muitos níveis, a estreia de Truffaut na longa-metragem não podia ter sido mais auspiciosa. Arrebatando o troféu para a melhor realização no Festival de Cannes de 1959, o mundo percebe que a “nouvelle vague” veio para ficar. O, até então, controverso e radical crítico de cinema, ascende rapidamente ao estatuto de “anjo consensual”, epíteto que jamais abandonaria até ao fim da sua carreira. Para isso bastou apresentar a história de Antoine Doinel de acordo com os novos métodos de filmar. Assim, durante cerca de uma hora e meia vamo-nos enternecendo com o caminho de um jovem empurrado por todas as injustiças, obrigado a reagir e, ao fazê-lo a excluir-se de um mundo que o excluiu muito antes de nascer. Obcecado com a sinceridade e espontaneidade das imagens, Truffaut passeia a câmara por uma Paris de cenários naturais, sem artifícios plásticos, em movimentos rápidos e inquietos “como o olhar de uma criança”. Antoine, numa soberba interpretação estreante de Jean- Piérre Léaud, vê-se confrontado com três vertentes essenciais da sua vida: Família, Escola e Lei, personificados por gente mesquinha, medíocre e egoísta, cujo comportamento o empurra inevitavelmente a fazer “trinta por uma linha” (esta a expressão correcta do título original do filme). Vivendo em condições precárias com a mãe o padrasto, vamos sabendo ao longo do filme que o seu nascimento não foi desejado. Mais tarde, numa fuga às aulas para um passeio com o amigo em Paris, surpreende a mãe com um colega do trabalho. Na escola é castigado pelas razões erradas. Tudo se precipita com a visita da mãe à escola. Antoine tinha dito que havia faltado porque ela tinha morrido. A culpa e o medo passam a ser os seus companheiros antes sequer de lhe pertencerem. Antoine não tem uma única ponte que o integre na vida, seja no cenário degradado da sua casa, na incompreensão da escola ou na confrontação com a lei. A casa de correcção é só o ponto culminante da indiferença colectiva que família e sociedade lhe ofereceram ao longo da curta existência. Segue-se a fuga e a cena final em frente ao mar. Entre o mundo e mar, Antoine está encurralado, sem saída.
Filme de uma ternura assustadora, LES 400 COUPS é também um pouco autobiográfico na medida em que o próprio realizador foi uma criança problemática resgatada do reformatório por André Bazin (um dos mentores mais importantes dos cineastas da “nouvelle vague”. Para Truffaut, a alternativa ao cinema teria sido a marginalidade e a morte precoce nas teias do crime. A sua obra é um alvo fácil de paixão e admiração na medida em que, dentro dos cenários mais negativos, injustos e adversos, o elemento humano vem ao de cima enquanto esplendor de inocência e solidariedade. Sem deixar de analisar a realidade na sua forma mais cruel e perniciosa, a casa negra descobre sempre uma criança dentro de um armário pronta para secar as suas lágrimas. A qualidade dos seus filmes está patente na actualidade com que os conseguimos (re)ver 30 e 40 anos depois. Para os mais distraídos com a obra de Truffaut, LES 400 COUPS é um excelente princípio para descobrir uma obra fantástica.

Artur