sábado, 27 de setembro de 2008

MEMÓRIAS TROPEÇADAS

Todos os dias de manhã, quando saio para o escritório e atravesso a Mata de Monsanto para fugir ao trânsito, passo por uma paragem de autocarro onde está sempre a mesma mulher como que acabada de sair de um buraco, e que trabalha sem horário fixo aliciando os que por ali passam a passar não sei bem o quê com ela. Apesar daquele ar de guerreiro Normando pouco antes do desembarque no próximo território a invadir, o certo é que clientela não lhe falta. Há tipos que vão lá…e pagam.
Lembro-me de há muitos anos passar todos os dias na estação do Rossio onde encontrava um homem de olhar vago, sentado num banco de madeira, mãos a tremer em volta de um cartaz: “Doente de uns ataques” – pendurado por um cordel ao pescoço para não cair. E muita gente dava-lhe dinheiro…
Doente de uns ataques, um dia atrás do outro, pessoas para cima e para baixo, ruídos do comboio a chegar e a partir, estações umas atrás das outras e, doente de uns ataques, mais um dia, mais uns comboios, mais uns meses. Doente de uns ataques, que não se sabe bem como ou sequer o que sejam, apenas que aconteciam, doente de uns ataques quando os dias se tornam azedos e não há nada de que queixar, ninguém para culpar. Doente de uns ataques e a sombra do Tempo a fazer força nos ombros, a tirar velocidade às pernas e a empurrar para o fim. Doente de uns ataques e PORRA!! Que fizemos nós afinal enquanto cá andámos, que terra é esta, quem são estas gentes e o retorno da perplexidade de crianças quando começámos a espreitar o mundo. Lembro-me da primeira vez que vi um grupo de pessoas a cantar os “parabéns” numa festa de aniversário (talvez a minha família) e de como tudo me pareceu estranho, assustador. Tudo, ou quase, me fazia confusão, talvez por ser novidade e não estar habituado. Noutra escala já adulto, tudo me continuou a fazer confusão. Não me consigo habituar à Vida, não me consigo familiarizar com a Morte.
Volto para o buraco de mim a uma velocidade cada vez maior e preencho obsessivamente todas as folhas em branco que encontro com estas palavras, tenham elas sentido ou não… Doentes de uns ataques estamos todos sem saber a origem do mal. Doentes de uns ataques, indiferentes aos que sobem e descem como quem parte para lado nenhum. Doentes de uns ataques, os ruídos, as sensações, os conceitos, o Amor apertado de espaço para se poder expandir, as estações do ano a andar á roda , á roda sem parar. Doentes de uns ataques, de ataque em ataque até ao ataque final…
ARTUR

2 comentários:

Vitor disse...

Vivemos uma porra de vida, num salve-se quem poder…que eu tenho mais que fazer…até dormir o fazemos à pressa…se calhar um destes dias dá-se mesmo o ataque final!

Clarice disse...

Passei tantas vezes por "doente de uns ataques", lembro-me perfeitamente, quando ia apanhar o metro para as minhas aulas de ballet. Perdi-lhe o rasto, hoje passo por outros "ataques", e a vida passa por mim. Fica tudo tão perto e tão longe de nós na vida, não fica?

*este texto dá pano para mangas!