quinta-feira, 4 de julho de 2013

A ÁRVORE DE JOSUÉ


                                                A árvore de Josué - Deserto da Califórnia


Normalmente por alturas do Verão sopravam ventos de mudança, mundos desapareciam enquanto outros se começavam a formar, ciclos fechavam-se para que outros se abrissem. A ordem natural das coisas acelerava o passo como uma dona de casa diligente nas limpezas e arrumações, para que tudo estivesse pronto e funcional antes de caírem as primeiras chuvas. Foi no verão que começámos a viver juntos, foi no Verão que cumpri o último dia do meu serviço militar. De manhã à frente do sargento da secretaria, uns papéis, uns carimbos e os votos de felicidades para uma nova etapa da vida. Do quartel saltei para a estação do comboio com o pensamento há muito deitado ao pé de ti a ver-te acordar. Um saco de lona verde com a trouxa de roupa mínima revolvida lá para dentro e uma K7 do último álbum dos U2 no bolso, o “Joshua Tree”. Estávamos juntos há um ano e tudo corria bem apesar do dinheiro ser curto e os horizontes limitados. Estantes de tábuas e tijolos das obras arrumavam os livros num pequeno apartamento suburbano, posters de filmes pendiam das paredes do corredor, tal como os sonhos que mesmo quando não se vivem todos os dias nem por isso deixam de existir. Segurávamos a vida nas nossas mãos através de um equilíbrio inexplicável mas firme que insuflava felicidade em cada gesto, oxigénio em cada movimento, amor em cada esquina do corpo. Cheguei depois do jantar para te encher de beijos antes de passar a porta da entrada, para deixar a camisola e as calças nas escadas e entrar já nu no quarto enrolado em ti como se fosse a primeira vez, como se o amanhã já não existisse. A música foi tocando no velho rádio da cozinha, as cervejas foram viradas as passas fumadas entre os vários actos das saudades insuportáveis, a cerimónia da alegria arrastou-se pelo calor da noite, “entre saliva e suor” como numa canção dos Rádio Macau. Parecia não haver “amanhã” por que de facto não havia mesmo. Era tudo o que menos interessava nestas paragens onde “as ruas não têm nome”, onde o Ser por mais resistente que seja acaba por soçobrar à força implacável do deserto e do tempo. Mas enquanto dura parece um poema a querer pisar o chão, uma harmonia que não deixa de se fazer ouvir, um acorde de vida no universo da aridez e da morte. Uma árvore de Josué teimosa e persistente a gastar cada dia num acto de resistência. Ainda não tínhamos encontrado aquilo que procurávamos nem iríamos nunca encontrar, esse caminho era apenas feito de imagens soltas que se conseguiam ver uma vez por outra. Imagens poderosas que nos lembravam como seria o filme, o filme que sabíamos que existia mas que não conseguíamos ver. Imagens poderosas como aquela noite quente e abafada no Sul em que dois corpos se fundiram num só com gestos de eternidade, em que dois espíritos desenharam a unidade e a origem. E nessas horas fomos felizes, percorrendo ainda que de uma forma breve alguns corredores desse palácio a que chamam felicidade. Um som a tocar rouco pela madrugada dentro, uma relação estranha com a vida que se consegue amar e odiar ao mesmo tempo, as corridas de que somos feitos ou que nos obrigamos a fazer, acelerados seres exaustos que não saem do sítio, como os bonecos de um jogo de matraquilhos. Alguma coisa muda no entanto, alguma coisa terá que mudar com a nossa breve passagem por estas terras secas e violentas, por estas paragens absurdas, por estes caminhos inúteis. Alguma coisa terá que fazer sentido mesmo quando não tem sentido nenhum. Alguma coisa…

Poderá a música mudar a vida das pessoas? Poderá um disco decidir da vida e da morte dos seres? Não sei. Sei apenas que antes que um novo Verão descesse sobre a Terra o teu ventre inchou e sorriu, tivemos o primeiro filho, éramos pais. Numa noite de felicidade quase perfeita alguma coisa nasceu para dar testemunho pelos anos fora, para atestar da sua veracidade, para que não houvesse dúvidas se teria realmente acontecido. Os anos passaram e os ciclos continuaram a fechar-se para que outros se pudessem abrir. O nosso fechou também. Como uma dona de casa diligente tentei passar à fase das limpezas e arrumações para que tudo estivesse pronto antes das primeiras chuvas. Das várias memórias que vou encostando na estante de tábuas de madeira e tijolos das obras, esta noite terá sempre um lugar destacado. Um lugar para recordar com conforto e alegria quando me estiver quase a convencer que neste imenso e infinito deserto não existe sequer uma árvore de Josué para umas tréguas de sombra.

 

Artur

3 comentários:

Hélder disse...

Sem palavras. C'arraio de coincidência!!! Logo hoje que se cumprem 19 anos que fui pai!!!
Obrigado por esta prenda Artur e um grande abraço.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Same type of mental disorder. Grande abraço choreldrio...

ziz disse...

adorei ler