A árvore de Josué - Deserto da Califórnia
Normalmente por alturas do Verão
sopravam ventos de mudança, mundos desapareciam enquanto outros se começavam a
formar, ciclos fechavam-se para que outros se abrissem. A ordem natural das
coisas acelerava o passo como uma dona de casa diligente nas limpezas e
arrumações, para que tudo estivesse pronto e funcional antes de caírem as
primeiras chuvas. Foi no verão que começámos a viver juntos, foi no Verão que
cumpri o último dia do meu serviço militar. De manhã à frente do sargento da secretaria,
uns papéis, uns carimbos e os votos de felicidades para uma nova etapa da vida.
Do quartel saltei para a estação do comboio com o pensamento há muito deitado
ao pé de ti a ver-te acordar. Um saco de lona verde com a trouxa de roupa
mínima revolvida lá para dentro e uma K7 do último álbum dos U2 no bolso, o
“Joshua Tree”. Estávamos juntos há um ano e tudo corria bem apesar do dinheiro
ser curto e os horizontes limitados. Estantes de tábuas e tijolos das obras
arrumavam os livros num pequeno apartamento suburbano, posters de filmes
pendiam das paredes do corredor, tal como os sonhos que mesmo quando não se
vivem todos os dias nem por isso deixam de existir. Segurávamos a vida nas
nossas mãos através de um equilíbrio inexplicável mas firme que insuflava
felicidade em cada gesto, oxigénio em cada movimento, amor em cada esquina do
corpo. Cheguei depois do jantar para te encher de beijos antes de passar a
porta da entrada, para deixar a camisola e as calças nas escadas e entrar já nu
no quarto enrolado em ti como se fosse a primeira vez, como se o amanhã já não
existisse. A música foi tocando no velho rádio da cozinha, as cervejas foram
viradas as passas fumadas entre os vários actos das saudades insuportáveis, a
cerimónia da alegria arrastou-se pelo calor da noite, “entre saliva e suor”
como numa canção dos Rádio Macau. Parecia não haver “amanhã” por que de facto
não havia mesmo. Era tudo o que menos interessava nestas paragens onde “as ruas
não têm nome”, onde o Ser por mais resistente que seja acaba por soçobrar à
força implacável do deserto e do tempo. Mas enquanto dura parece um poema a
querer pisar o chão, uma harmonia que não deixa de se fazer ouvir, um acorde de
vida no universo da aridez e da morte. Uma árvore de Josué teimosa e
persistente a gastar cada dia num acto de resistência. Ainda não tínhamos
encontrado aquilo que procurávamos nem iríamos nunca encontrar, esse caminho
era apenas feito de imagens soltas que se conseguiam ver uma vez por outra.
Imagens poderosas que nos lembravam como seria o filme, o filme que sabíamos
que existia mas que não conseguíamos ver. Imagens poderosas como aquela noite
quente e abafada no Sul em que dois corpos se fundiram num só com gestos de
eternidade, em que dois espíritos desenharam a unidade e a origem. E nessas horas
fomos felizes, percorrendo ainda que de uma forma breve alguns corredores desse
palácio a que chamam felicidade. Um som a tocar rouco pela madrugada dentro,
uma relação estranha com a vida que se consegue amar e odiar ao mesmo tempo, as
corridas de que somos feitos ou que nos obrigamos a fazer, acelerados seres
exaustos que não saem do sítio, como os bonecos de um jogo de matraquilhos.
Alguma coisa muda no entanto, alguma coisa terá que mudar com a nossa breve
passagem por estas terras secas e violentas, por estas paragens absurdas, por
estes caminhos inúteis. Alguma coisa terá que fazer sentido mesmo quando não
tem sentido nenhum. Alguma coisa…
Poderá a música mudar a vida das
pessoas? Poderá um disco decidir da vida e da morte dos seres? Não sei. Sei
apenas que antes que um novo Verão descesse sobre a Terra o teu ventre inchou e
sorriu, tivemos o primeiro filho, éramos pais. Numa noite de felicidade quase
perfeita alguma coisa nasceu para dar testemunho pelos anos fora, para atestar
da sua veracidade, para que não houvesse dúvidas se teria realmente acontecido.
Os anos passaram e os ciclos continuaram a fechar-se para que outros se
pudessem abrir. O nosso fechou também. Como uma dona de casa diligente tentei
passar à fase das limpezas e arrumações para que tudo estivesse pronto antes
das primeiras chuvas. Das várias memórias que vou encostando na estante de
tábuas de madeira e tijolos das obras, esta noite terá sempre um lugar
destacado. Um lugar para recordar com conforto e alegria quando me estiver quase
a convencer que neste imenso e infinito deserto não existe sequer uma árvore de
Josué para umas tréguas de sombra.
Artur
3 comentários:
Sem palavras. C'arraio de coincidência!!! Logo hoje que se cumprem 19 anos que fui pai!!!
Obrigado por esta prenda Artur e um grande abraço.
Same type of mental disorder. Grande abraço choreldrio...
adorei ler
Enviar um comentário