quarta-feira, 3 de julho de 2013

ATLANTIS



Uma vez percebidas as portas para a Atlântida não há vontade nenhuma de voltar para trás, somos abraçados pela recordação de um tempo confortável, por um ambiente harmonioso quase perfeito, pela voz que confirma à memória essa lembrança que apesar de nunca se conseguir ver nem por isso se esqueceu.

Aos meus pés o mar e no olhar a linha do horizonte. O barco ao longe parece sempre parado mas no entanto move-se como a Terra, como o Sol, como tudo, enfim. Tudo está de passagem com breves paragens em algumas estações, recordações, regresso à ilha da minha infância embalado em companhia familiar, tento repetir comportamentos, desembaraçar o corpo, comungar com a Natureza. Saltos do cais ao pôr-do-sol com a maré-cheia, muros para trepar com métodos de osga, corridas na areia, jogatanas de bola com os sobrinhos. Um barco que se mantém imóvel no horizonte mas que afinal nunca parou. Os ossos protestam rangendo humidades, desculpando-se com as artroses, os músculos olham para ti com alguma admiração (“ mas pensas que isto é algum elástico?”) e vingam-se com cãibras fugidias, os bofes começam a bufar muito mais depressa, o coração encosta a bicicleta e fala sozinho a bater ao ritmo que lhe apetece (“ já bati muita estrada, sim senhor…outros tempos, velocípede, outros tempos”) Tal como o barco que parece não andar, andando, também eu não lhes ligo, finjo que pertencem a outro corpo e deixo o meu único aliado (o cérebro) mergulhar comigo da ponte abaixo enquanto o Sol se enrosca vagaroso na manta do Oeste em variações de fogo alaranjado. Os filhos e os sobrinhos são homens feitos, falam de miúdas, cerveja, bandas de rock. Viram-se para os “velhos” quando querem ter uma certeza acerca do tempo em que ainda não tinham cruzado os portões da Atlântida para o lado de cá. Confirmam, desenham sorrisos malandros, observam com a ingenuidade própria de quem começou a caminhar há pouco tempo. Há nisto tudo uma brisa refrescante de felicidade que esvoaça sobre as minhas memórias, as minhas células velhas que se reproduzem cada vez mais devagar. Tudo passa mesmo quando parece não passar, o barco está ali e daqui a bocado deixa de estar, muda de sítio, muito devagar, sobre o portal atlante. Há uma vontade enorme de não voltar para trás, de não regressar à falta de sentido, às ruas do absurdo palmilhadas todos os dias, às mágoas desnecessárias, à futilidade das obrigações e do sacrifício, aos desencontros e às charadas indecifráveis do coração. Olho outra vez para a ilha da minha infância, para as rugas da minha irmã, para as barbas do meu sobrinho mais velho e parece que me encostei à recordação de um tempo confortável, que vesti uma camisola harmoniosa, quase perfeita, um conforto que vem confirmar à memória essa lembrança que apesar de nunca se conseguir ver nem por isso se esqueceu. Não interessa a viagem mas o momento em que estamos, não interessa a paragem mas a continuidade do movimento, não interessa nada. As memórias espalham-se no areal como gaivotas ao fim do dia em busca de alimento. Basta um cachorro cheio de vida, uma criança a correr para debandarem em voo livre e desordenado em todas as direcções. O cão volta para o dono, a criança volta para casa e a praia fica deserta, aberta apenas aos beijos das ondas. E tudo desaparece como se nunca tivesse acontecido. Ás portas da Atlântida recordamos a casa de onde viemos e recusamos voltar atrás, em frente às recordações queremos ser o que fomos sabendo que nunca é possível inverter a direcção da linha do tempo. Que nada está parado mesmo quando parece não andar, que as gerações passam como as ondas, beijando o areal onde as memórias aterram ao fim do dia. Voltar a beber da garrafa das recordações não é o mesmo que regressar ao passado. Voltar a encontrar as gaivotas espalhadas no areal e correr até as dispersar é como quem pega na vassoura e vem apenas apagar o rasto que deixou. É explicar o caminho àqueles que nos seguem. Uma vez percebidas as portas para a Atlântida, uma vez encontrado o caminho de regresso a casa, nunca se volta para trás. Respeita-se a lei do movimento contínuo e dá-se início ao caminho. De repente o barco que passava devagar na linha do horizonte, as gaivotas que bicavam o chão da praia, a vida de todos os dias, as mágoas e as charadas indecifráveis do coração, tudo desapareceu, tudo se desfez pacificamente ao sabor dos beijos que as ondas desenham na humidade do areal. Porque nunca houve princípio nem fim mas um perpétuo continuar.

 

Artur

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