Uma vez percebidas as portas para
a Atlântida não há vontade nenhuma de voltar para trás, somos abraçados pela
recordação de um tempo confortável, por um ambiente harmonioso quase perfeito,
pela voz que confirma à memória essa lembrança que apesar de nunca se conseguir
ver nem por isso se esqueceu.
Aos meus pés o mar e no olhar a
linha do horizonte. O barco ao longe parece sempre parado mas no entanto
move-se como a Terra, como o Sol, como tudo, enfim. Tudo está de passagem com
breves paragens em algumas estações, recordações, regresso à ilha da minha
infância embalado em companhia familiar, tento repetir comportamentos,
desembaraçar o corpo, comungar com a Natureza. Saltos do cais ao pôr-do-sol com
a maré-cheia, muros para trepar com métodos de osga, corridas na areia,
jogatanas de bola com os sobrinhos. Um barco que se mantém imóvel no horizonte
mas que afinal nunca parou. Os ossos protestam rangendo humidades,
desculpando-se com as artroses, os músculos olham para ti com alguma admiração
(“ mas pensas que isto é algum elástico?”) e vingam-se com cãibras fugidias, os
bofes começam a bufar muito mais depressa, o coração encosta a bicicleta e fala
sozinho a bater ao ritmo que lhe apetece (“ já bati muita estrada, sim
senhor…outros tempos, velocípede, outros tempos”) Tal como o barco que parece
não andar, andando, também eu não lhes ligo, finjo que pertencem a outro corpo
e deixo o meu único aliado (o cérebro) mergulhar comigo da ponte abaixo
enquanto o Sol se enrosca vagaroso na manta do Oeste em variações de fogo
alaranjado. Os filhos e os sobrinhos são homens feitos, falam de miúdas,
cerveja, bandas de rock. Viram-se para os “velhos” quando querem ter uma
certeza acerca do tempo em que ainda não tinham cruzado os portões da Atlântida
para o lado de cá. Confirmam, desenham sorrisos malandros, observam com a
ingenuidade própria de quem começou a caminhar há pouco tempo. Há nisto tudo
uma brisa refrescante de felicidade que esvoaça sobre as minhas memórias, as
minhas células velhas que se reproduzem cada vez mais devagar. Tudo passa mesmo
quando parece não passar, o barco está ali e daqui a bocado deixa de estar,
muda de sítio, muito devagar, sobre o portal atlante. Há uma vontade enorme de
não voltar para trás, de não regressar à falta de sentido, às ruas do absurdo
palmilhadas todos os dias, às mágoas desnecessárias, à futilidade das
obrigações e do sacrifício, aos desencontros e às charadas indecifráveis do
coração. Olho outra vez para a ilha da minha infância, para as rugas da minha
irmã, para as barbas do meu sobrinho mais velho e parece que me encostei à
recordação de um tempo confortável, que vesti uma camisola harmoniosa, quase
perfeita, um conforto que vem confirmar à memória essa lembrança que apesar de
nunca se conseguir ver nem por isso se esqueceu. Não interessa a viagem mas o
momento em que estamos, não interessa a paragem mas a continuidade do
movimento, não interessa nada. As memórias espalham-se no areal como gaivotas
ao fim do dia em busca de alimento. Basta um cachorro cheio de vida, uma criança
a correr para debandarem em voo livre e desordenado em todas as direcções. O
cão volta para o dono, a criança volta para casa e a praia fica deserta, aberta
apenas aos beijos das ondas. E tudo desaparece como se nunca tivesse
acontecido. Ás portas da Atlântida recordamos a casa de onde viemos e recusamos
voltar atrás, em frente às recordações queremos ser o que fomos sabendo que
nunca é possível inverter a direcção da linha do tempo. Que nada está parado
mesmo quando parece não andar, que as gerações passam como as ondas, beijando o
areal onde as memórias aterram ao fim do dia. Voltar a beber da garrafa das
recordações não é o mesmo que regressar ao passado. Voltar a encontrar as
gaivotas espalhadas no areal e correr até as dispersar é como quem pega na vassoura
e vem apenas apagar o rasto que deixou. É explicar o caminho àqueles que nos
seguem. Uma vez percebidas as portas para a Atlântida, uma vez encontrado o
caminho de regresso a casa, nunca se volta para trás. Respeita-se a lei do
movimento contínuo e dá-se início ao caminho. De repente o barco que passava
devagar na linha do horizonte, as gaivotas que bicavam o chão da praia, a vida de todos
os dias, as mágoas e as charadas indecifráveis do coração, tudo desapareceu,
tudo se desfez pacificamente ao sabor dos beijos que as ondas desenham na
humidade do areal. Porque nunca houve princípio nem fim mas um perpétuo
continuar.
Artur
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